‘Tortura não tem fim’, diz vítima da ditadura que ficou presa no DOI-Codi; escavações atraem relatos e impulsionam criação de memorial

Coordenadora de arqueologia forense do projeto que reúne pesquisadores que buscam elementos para comprovar violação de direitos humanos diz que divulgação do trabalho fez com que muitas pessoas os procurassem: ‘Todos querem contar essa história, que estava apagada’. Visitantes se manifestam à favor da criação do memorial na sede do antigo DOI-Codi, em São Paulo
Renata Bitar/g1
As duas semanas de trabalho arqueológico na antiga sede do DOI-Codi, um centro clandestino de tortura da época da ditadura militar, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo, rendeu aos pesquisadores mais do que provas materiais do que ocorria lá; novos testemunhos também vieram à tona.
“Ao sair nossos nomes nos jornais, muitas pessoas de vários lugares nos procuraram, falando que seus pais, seus primos foram vítimas, e agora todos querem contar essa história, que estava apagada”, diz Cláudia Plens, coordenadora de arqueologia forense do projeto que reúne pesquisadores de Unicamp, Unifesp e UFMG e faz investigação forense e arqueológica em busca de elementos que comprovem violação de direitos humanos praticadas no órgão de repressão.
“A sociedade estava engasgada, querendo falar sobre o assunto, mas precisou ser motivada por este trabalho”, afirma.
Em 5 de agosto, um sábado, 15 ex-presos do DOI-Codi retornaram ao local onde foram detidos e torturados. “Intenso”, “um acontecimento”, descreve Deborah Neves. Durante a visita, memórias que estavam há tempos bloqueadas foram despertadas e, a partir disso, os sobreviventes puderam compartilhar uns com os outros e com os próprios familiares situações que viveram naquele espaço.
Emílio Ivo Ulrich, preso aos 23 anos no DOI-Codi, em São Paulo, onde foi torturado
Renata Bitar/g1
Emílio Ivo Ulrich, de 76 anos, é um dos que deixou seu depoimento. Detido e torturado aos 23 anos no DOI-Codi, na época do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ele hoje consegue falar abertamente sobre tudo o que passou no segundo andar de um dos prédios do complexo.
Mas isso é recente. Ele diz que só se tornou possível após um período de internação na Clínica do Testemunho, um projeto criado em 2012 pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, como uma forma de reparar danos causados pela violência do Estado no período ditatorial.
“Eu saí da cadeia completamente louco. Minha cabeça não funcionava, eu me tornei um alcoólatra, eu não conseguia viver. Eu não conseguia dormir, sonhava com tortura, sonhava com o Ustra todos os dias. Era terrível. Eu não conseguia falar sobre a tortura, só chorava, não conseguia descrever o que tinha acontecido comigo”, conta Emílio. “A tortura não tem fim”, destaca.
E complementa: “As mulheres sofriam duplamente, porque além de torturadas, elas eram estupradas”.
A questão de gênero foi levada em conta no trabalho. Deborah Neves, coordenadora do Grupo de Trabalho, afirma que foi priorizada a coleta de testemunho de mulheres. “A gente entende que é um grupo bastante sub-representado, de uma característica de violência bastante singular dentro desse espaço de repressão.”
Na segunda-feira (14), último dia do grupo de trabalho no local das escavações, Alba Torigoe procurou os pesquisadores para falar sobre o desaparecimento e morte de seu primo Hiroaki Torigoe em 1972.
Na época com cerca de dez anos, Alba se lembra dos momentos de aflição vividos pela família e de quando soube, pela televisão, que seu primo estava morto. Na época, a versão oficial era a de ele teria sido baleado em uma troca de tiros com agentes de segurança. Porém, relatos de ex-presos políticos e fotos da necrópsia contradizem essa narrativa, como consta no Memorial da Resistência de SP.
Inscrições encontradas em parede de banheiro no DOI-Codi, em São Paulo
Renata Bitar/g1 SP
Os arqueólogos explicam que depoimentos como os de Alba são de grande importância. Apesar da pouca idade que tinha para entender o que estava acontecendo, os efeitos de tais fatos acompanharam sua família por anos, influenciando sua vida de alguma forma. Esses fragmentos são como peças de um quebra-cabeça que os pesquisadores tentam montar.
Desde o último ano, o grupo coletou 23 testemunhos de pessoas que foram detidas no centro de tortura da capital paulista. A expectativa agora é que consigam reunir pelo menos outros 80 até 2025. Também esperam poder ouvir versões de quem trabalhava no local, mas, até a última atualização desta reportagem, não haviam localizado essas pessoas.
Preservação da memória
O Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna ou, simplesmente, DOI-Codi foi um órgão clandestino criado em 1969 e incorporado ao Exército no ano seguinte, quando foi oficializado e recebeu este nome. Ele foi um dos centros de tortura, assassinato e desaparecimento forçado mais atuantes do país.
Visita guiada à sede do antigo DOI-Codi, em São Paulo
Tuanny Lima/GT DOI-Codi
Estima-se que mais de 7 mil opositores da ditadura tenham sido torturados nas dependências do órgão durante seu período de atuação, até o início da década de 1980.
Somente no período em que o centro foi comandado pelo Coronel Ustra, entre 29 de setembro de 1970 e 23 de janeiro de 1974, foram registradas ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados, de acordo com relatório elaborado pela Comissão Nacional da Verdade, que apurou casos de tortura e sumiço de presos políticos durante a ditadura militar.
Um dos casos mais emblemáticos da sede na Vila Mariana foi a morte do jornalista Vladmir Herzog.
Em 2014, o complexo foi tombado pelo órgão de preservação patrimonial do estado, o Condephaat. Três anos depois, também foi efetuado o tombamento pelo Conpresp, no âmbito municipal.
Há pouco mais de dois anos, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação civil contra o governo paulista por entender que a gestão estadual não atuou para assegurar que o antigo centro de detenção fosse utilizado para preservar a memória dos ex-presos políticos.
Voluntários em escavação na sede do antigo DOI-Codi, em São Paulo
Tuanny Lima/GT DOI-Codi
De acordo com o advogado Flávio Bastos, do Núcleo Memória, que atua na defesa da criação do memorial, o processo se encontra parado, aguardando uma possibilidade de negociação com o governo do estado. Caso isso não venha a ocorrer, o caso será, então, julgado pelo magistrado responsável.
As expectativas não são as melhores. Para o trabalho realizado nesta primeira quinzena de agosto, o grupo de pesquisadores afirma que teve 14 recusas de financiamento por parte da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, assim como não obteve retorno nas tentativas de convênio que a Unicamp propôs ao governo estadual – tudo isso ao longo dos últimos cinco anos.
América Latina
Sala dentro da ESMA, antigo centro clandestino de detenção, localizado em Buenos Aires, na Argentina
Renata Bitar/g1
Segundo a coordenadora do projeto, Deborah Neves, o trabalho que realizam em busca de provas materiais e testemunhos sobre as violações cometidas durante a ditadura no Brasil foi inspirado no que ocorreu na Argentina.
Em maio de 2015, o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura argentina em Buenos Aires (1976-1983), o ESMA, foi transformado em um memorial, posteriormente sendo declarado como monumento histórico nacional e bem cultural do Mercosul.
O objetivo do espaço é disseminar conhecimento e proporcionar uma imersão dos visitantes aos lugares onde aconteciam os crimes, promovendo um diálogo com as diferentes gerações e abordando passado e futuro.
Emílio Ivo Ulrich, preso aos 23 anos no DOI-Codi, em São Paulo, onde foi torturado
Renata Bitar/g1

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