Odorico Paraguaçu: um prefeito na academia

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Por José Correia Torres Neto
Doutor em Educação e editor de publicações

Quando o soteropolitano Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922 – 1999) publicou em 1963, na revista Claudia, “Odorico, o Bem Amado e os Mistérios do Amor e da Morte”, talvez não percebesse – ou até percebesse muito bem – a dimensão do que estava retratando do Brasil. O texto teria sido escrito em 1962 com o título “Odorico, o Bem-Amado” e encenado pela primeira vez em 1969 pelo grupo TAP (Teatro de Amadores de Pernambuco) no Teatro Santa Isabel, em Recife.

O dramaturgo e novelista Dias Gomes conseguiu colocar na pequena e fictícia cidade de Sucupira, fincada no litoral baiano, diversos personagens que são encontrados facilmente em qualquer lugar do Brasil, claro que em uns lugares mais facilmente do que em outros. Em Sucupira, estão os políticos e seus sectários, aquele jornal progressista, o dito “jornal comunista”, o anti-herói, a classe trabalhadora, as práticas eleitoreiras, o bebedor de cachaça, os alcoviteiros e tudo que venha a representar uma cidade brasileira.

De 1963 a 2023, exatos sessenta anos, são poucas, ou quase inexistentes, as diferenças entre a Sucupira do século XX e as Sucupiras do século XXI. Celulares, computadores e internet até ajudaram na consolidação de cada uma dessas Sucupiras, mas as práticas administrativas e políticas permanecem as mesmas, mas com um refinamento que só a modernidade pode favorecer. A história de Sucupira e seus incríveis personagens renderam três publicações que narram o cotidiano de uma cidade que poderia ser a mais peculiar do planeta terra: O Bem-Amado, farsa sociopolítico-patológica em 9 quadros (1962), Sucupira, ame-a ou deixe-a, venturas e desventuras de Zeca Diabo e sua gente na terra de Odorico, o Bem-Amado (1982) e Odorico na cabeça (1991).

É na primeira obra, O Bem-Amado, […], que encontramos as narrativas sobre como o coronel Odorico Paraguaçu se torna prefeito da litorânea Sucupira. Após testemunhar um cortejo fúnebre de um sucupirense carregado em uma rede para ser enterrado a três léguas da cidade e acompanhado apenas por uma velha beata e um cachorro magro, Odorico se indigna com a cena e acha um absurdo a cidade turística de Sucupira não ter um cemitério, um campo santo onde seus filhos pudessem descansar em paz. Verborrágico e um aproveitador de pessoas e de situações, o coronel se lança candidato a prefeito, e ganha, trabalhando com uma única proposta – a de construir um cemitério na cidade.

Com uma assessoria de mesma natureza e inclinação que a sua, o prefeito estava disposto a tudo para inaugurar o cemitério, mas a ausência de mortos disponíveis fazia com que o espaço reservado e murado servisse apenas para cultivar pastos para animais. Entre uma e outra tentativa frustrada de inauguração, o prefeito-coronel, ou o coronel-prefeito, Odorico encontrava algo para se promover e ganhar um bom dinheiro. Seus braços direitos – Dirceu Borboleta e as irmãs Cajazeiras – acomunavam-se para promover as artimanhas que sempre o beneficiassem.

Na obra seguinte, que seria publicada vinte anos após, Sucupira, ame-a ou deixe-a […], o prefeito Odorico Paraguaçu continuava, mas sem sucesso, com o seu objetivo de inaugurar o cemitério, custasse o que custasse, podendo ser com um conterrâneo ou com qualquer forasteiro dos arredores da cidade que, porventura, passasse desta para melhor espontaneamente, ou que se voluntariasse como o primeiro “morto matado” a ser sepultado naquele campo santo.

Entre a peleja de encontrar um defunto para o imaculado cemitério e as peraltices administrativas, Odorico Paraguaçu encontrou tempo para o exercício da intelectualidade e foi aí que se candidatou a uma vaga na Academia Sucupirense de Letras. O candidato à imortalidade colocou o seu nome para a apreciação dos demais imortais conterrâneos. Sua obra, Meus improvisos, que, como a própria expressão apresenta, reunia a transcrição de seus discursos “de improvisos” recheados de neologismos e de prevaricações linguísticas. Mesmo que uma das Cajazeiras achasse o título meio contraditório, o autor justificou que todos foram posteriormente reconstituídos “de memória”. É assim, após as visitas aos imortais aptos a votar, que Odorico Paraguaçu, em torno de mistérios, assume a cadeira 17 – número já bem sugestivo para a época – patronada por José do Patrocínio, com direito a colar, fardão e espada simbólica da Academia Sucupirense de Letras.

Como se não bastassem todas as vilanias em dois livros, Dias Gomes publica Odorico na Cabeça, que desfia um rosário de contos que escarafuncha ainda mais a personalidade mais que nefasta do coronel sucupirense. O primeiro conto – O chafarótico – se resume à inauguração conturbada de um chafariz na cidade cujo destaque maior é a centenária escultura barroca que foi restaurada para instalação do chafariz. A escultura em bronze representava a figura de três meninos nus por onde esguichavam água de suas minúsculas genitálias. A água do chafariz, que segundo Odorico matou a sede de amor de D. Pedro I e de uma certa dama quando passaram pela cidade, também se tornou consumível pela população sucupirense. Mas são outros calores, ditos carnais, que fazem a trama se desenrolar em torno da fonte de água, causando atribulações e, evidentemente, lucros ao prefeito.

Odorico tinha Sucupira como uma de suas propriedades – terras ou indústria –, de onde extraia lucro em todas as ocasiões e oportunidades, sem levar em consideração a população e o meio ambiente, além de nomear ruas e praças da cidade com o nome de sua família. A cidade estava sob o seu controle político, mas ele sempre era ameaçado pela oposição, que utilizava a imprensa esquerdista para inibir as ações criminosas de Odorico, o que não conseguia às vezes.

Para acobertar suas improbidades, Odorico contava com os seus asseclas para darem boas sacudidas na legislação municipal e assim ele seguia em frente. O oportunismo do prefeito bufão se desmembrava pelos quatro cantos da turística Sucupira e deixava a cidade cada vez mais distante dos seus munícipes, a mercê da descabida e criminosa administração que o fez imortal mesmo antes de ser membro da Academia Sucupirense.

São essas e várias outras traquinagens ilegais que se distribuem ao longo da gestão do imortal prefeito Odorico Paraguaçu e registrada na obra de Dias Gomes.

 

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