Não foi enchente

Não foi uma enchente. Enchentes são aquelas, históricas, frutos de dias intermináveis de chuva renitente, em que a mãe olha pela vidraça da janela e profetiza (não por qualquer dom mediúnico, senão pela serenidade de quem já viveu experiências): vai dar enchente.

Não por acaso ou por ira divina, essas cheias se dão normalmente no inverno, período em que os mais necessitados já dependem de solidariedade. Os governos se preparam, as entidades beneficentes se movimentam em campanhas, os comuns do povo nos enchemos de amor ao próximo e doamos o que nos sobeja para que nossos irmãos estejam mais confortáveis.

A cultura ribeirinha, construída por quem enfrenta as enchentes regularmente ao longo da vida, aconselha que casas sejam levantadas prudentemente sobre pilares de altura superior ao nível a que pode atingir uma grande enchente. Apegam-se a dados passados de gerações anteriores, certamente medidos pelas marcas da água barrenta deixadas nas paredes das casinhas. Debaixo das casas sempre haverá um caíque. Homens simples, de poucas teorias, mas pragmáticos observadores das nuanças naturais que lhes pode afetar a vida. Enchentes são cíclicas e não de episódio único como o dilúvio bíblico. Arcas são desnecessárias, mas é interessante manter-se por perto um caíque. Por previsíveis, as enchentes são domesticadas, fazem parte da cultura local, ainda que a logística de atendimento aos atingidos precise de constante aprimoramento.

Não são enchentes os alagamentos ocorridos quando uma manga d’água surpreende os bueiros atulhados de lixo plástico e inunda o centro e bairros. Ali, os atingidos não são, necessariamente, os menos privilegiados. Os problemas são de mobilidade e trânsito. Nestes casos, o Poder Público tem grande responsabilidade, pois obras de desgargalamento da rede de águas pluviais e manutenção das bocas-de-lobo são estruturais e deveriam constar dos planos de todos os governos, há muito tempo.
Não foi enchente o que nos atingiu neste passado final de semana. Não como aquelas que descrevo como normais, cíclicas, previsíveis e mitigáveis. Culturais, para os que tem o centro da cidade à beira de um mítico rio da mata. Aquelas que cobram ações de rotina dos governos e apelam para as costumeiras campanhas de solidariedade.

Tratou-se de um grande alagamento provocado pela virulência de um ciclone extratropical. Embora a aproximação do ciclone fosse detectada pelos sistemas de previsão meteorológica, a trajetória da espiral de ventos e chuva, em terra, é incerta e seus estragos só podem ser medidos depois de feitos.Coube-nos estar no caminho do turbilhão. Ao contrário das enchentes normais, choveu menos na Serra, de onde corre o rio Caí, e muito mais na região baixa, principalmente a partir de quinta-feira à noite. Este fato nocauteou as previsões otimistas de uma pequena enchente.

Não foi uma enchente das nossas, aquelas que descem da Serra, serpenteando montanhas e vales, aumentando com as contribuições de riachos ao longo do trajeto, perfeitamente medível a cada quilômetro.
Foi uma agressão pelas costas, da qual não podemos nos defender a tempo, mas cujas feridas devem ser tratadas com todo cuidado.

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