Pesquisadora moradora de favela em SP diz que câmeras nas fardas dos PMs levou ‘sensação de sossego’ à comunidade

Estado de São Paulo teve o menor número de mortes por policiais militares em serviço na história em 2022 após implementação da tecnologia, com queda de 80% da letalidade entre adolescentes. Taxa de mortes de militares também caiu. Entenda como funcionam as câmeras corporais usadas pela PM de São Paulo
Sabrina Santos é estudante de Ciências Econômicas e Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC e pesquisadora do projeto-observatório “De olho na quebrada”, da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS).
Moradora da favela de São Savério, que fica próxima a Heliópolis, maior comunidade da cidade de São Paulo, ela contou ao g1 que, após a implementação de câmeras portáteis nos uniformes dos policiais militares, os habitantes de comunidades da Zona Sul notaram uma polícia menos ostensiva.
“Percebemos que o número de policiais dentro do bairro diminuiu, assim como a imagem deles empunhando as armas, agredindo os moradores — tanto verbalmente quanto fisicamente. Foi uma sensação muito mais de sossego, sabe, para grande parte da galera que reside aqui”, destacou.
A redução da mortalidade de adolescentes em intervenções policiais chegou a 80,1% em 2022 no estado de São Paulo depois que a instituição adotou o uso do equipamento.
(veja mais números abaixo)
Sabrina aponta que, além da tecnologia da PM, a redução nos números de violência se deve também às ações e projetos de cunho social desenvolvidos tanto pela UNAS quanto por outras associações, serviços e equipamentos públicos locais.
“Se as câmeras forem retiradas dos uniformes das PMs, eu não tenho dúvidas que ações como essas, que aconteceram em Heliópolis, ressurgirão. Não tenho dúvida sobre isso”.
Ela se refere ao que aconteceu na comunidade após o desaparecimento do soldado Leandro Patrocínio em 2021. O militar teria sido torturado e morto depois de ser identificado como policial em um baile funk em Heliópolis.
“Falo da nossa experiência enquanto jovens racializados dentro do bairro, sobre o chão que a gente pisa. Os desdobramentos desse caso resultaram em uma polícia fortemente armada aqui dentro, troca de tiros, uma abordagem preconceituosa, de revanchismo pela ideia de o território ser dominado pelo crime organizado”, relembra.
Segundo a pesquisadora:
Os policiais entravam nas casas das pessoas sem mandado judicial;
Abordavam os moradores na entrada e na saída da comunidade;
Jovens eram levados para a delegacia porque identificavam eles como suspeitos — “e a gente sabe que essas ações eram motivadas pelo racismo”.
“Os policiais que entraram em Heliópolis não tinham suas ações monitoradas, não tinham câmeras. Era nossa palavra contra a da polícia. Foi um momento muito tenso, em que a gente viu mesmo a necessidade dessas câmeras”, afirmou.
COPs em números
A pesquisa, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com a Unicef, mostrou que, entre 2020 e 2022, 62 dos 135 batalhões da PM de São Paulo incorporaram as câmeras durante a rotina de serviço. A diferença nos números pré-COP e pós-COP é nítida:
Em 2017, foram 171 mortes provocadas por intervenções de policiais militares (MDIP) em serviço de jovens entre 15 e 19 anos;
Em 2021, ano seguinte à implementação das câmeras, foram 42 mortes (-75%);
Já em 2022, foram registradas 34 mortes, o menor número da série histórica (- 80,1%, se comparado a 2017) compilada pelo Ministério Público de São Paulo no relatório Letalidade Policial em Foco; único que traz dados por faixa etária;
Veja mais na tabela abaixo.
O número também é o menor da série histórica da Secretaria da Segurança Pública desde 2001, quando começaram a separar mortes praticadas por policiais em serviço e fora.
“Estamos falando de uma interação muito violenta com adolescentes, que são estigmatizados como um grupo suspeito por definição, especialmente se pretos, pobres e periféricos”, disse ao g1 Samira Bueno, diretora do Fórum.
“Reduzir a letalidade provocada pela PM é oferecer perspectiva de vida para esse público, que vive sob a expectativa de ser vítima da violência policial”, apontou.
Mortes cometidas por policiais militares em serviço e fora de 2001 a 2022
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Os pesquisadores destacam que, embora a letalidade provocada por policiais militares passe a cair a partir de 2018 entre crianças e adolescentes, a queda se acentua a partir de 2020, ano de implementação das câmeras operacionais portáteis (COP).
Como funcionam as câmeras corporais da Polícia Militar de SP
Nos batalhões que incorporaram o uso das câmeras corporais tiveram redução de 76,2% na letalidade dos policiais militares em serviço entre 2019 e 2022, enquanto nos demais batalhões a queda foi de 33,3%. O número de adolescentes mortos em intervenções de policiais militares em serviço caiu 66,7%, passando de 102 vítimas em 2019 para 34 em 2022.
“O período analisado coincide com a adoção das câmeras operacionais portáteis (COP) pela polícia militar do estado de São Paulo, que começou no segundo semestre de 2020. Historicamente, adolescentes sempre foram os mais impactados por esse tipo de violência letal. Em 2020, pela primeira vez, essa população deixou de ser uma das que mais morre por intervenção policial no estado de São Paulo”, diz Adriana Alvarenga, chefe do escritório do UNICEF em São Paulo.
Vítimas de MDIP da PMESP em serviço por faixa etária (2017 a 2022)
Alta taxa de adolescentes mortos
Em 2017, mais de um terço (34,7%) das mortes provocadas por intervenções de policiais militares tiveram como vítimas jovens de 15 a 19 anos, número inferior apenas à faixa de 20 a 29 anos, com 208 mortes (42,2%).
“O estado de São Paulo tem uma especificidade que é a alta letalidade provocada por policiais entre adolescentes. Enquanto a média nacional de adolescentes mortos em intervenções policiais é de 12%, em SP chegou a 35% em 2017, antes da implantação do programa”, explicou Samira.
Em 2021, a proporção de jovens de 15 a 19 anos mortos (42) por PMs caiu para 14,3% do total (292);
Em 2022, o número total de vítimas foi o menor da série histórica (206), e a proporção de adolescentes mortos ficou abaixo da metade (16,5%) do que foi registrado em 2017.
“Com a implementação das câmeras corporais e outras medidas de controle, os adolescentes deixaram de ser o principal grupo vitimado pela PM”, destacou a diretora do FBSP.
Menos negros mortos
(mas ainda os que mais morrem)
O estudo também aborda o perfil racial das vítimas da violência policial em serviço:
Entre 2017 e 2022, 62,7% eram negros (pretos e pardos), 34,7% eram brancos, 0,1% amarelos, e, em 2,5%, cor da vítima não foi preenchida no boletim de ocorrência;
Entre 2019 e 2022, houve quedas expressivas nas taxas de letalidade: redução de 64,3% entre negros e de 66,2% entre brancos;
Entre 2017 e 2022, a queda da taxa de mortalidade entre negros (- 63,5%) foi maior que a entre brancos (- 58,3%).
No entanto, a pesquisa ressalta que, mesmo que a redução nas mortes acontecido de modo proporcional entre brancos e negros, a taxa de letalidade pela polícia segue sendo três vezes maior entre negros do que entre brancos.
Quase 70% das pessoas mortas por letalidade policial no estado de SP eram negras, aponta levantamento
Policiais Militar exibem câmeras de segurança nos uniformes durante evento no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo.
Secom/GESP
Para a chefe do escritório da Unicef em São Paulo, os indicadores analisados no estudo mostram que é possível reduzir as mortes de adolescentes em decorrência de intervenção policial, mas também evidenciam que é importante continuarmos investindo em políticas públicas.
“Apesar da redução, o estado de São Paulo ainda apresenta um número elevado de violência letal contra adolescentes, incluindo as mortes em decorrência de intervenção policial. Nos últimos quatro anos, de 2019 a 2022, 273 adolescentes e jovens paulistas, entre 15 e 19 anos, foram mortos por intervenções policiais nos últimos quatro anos. É urgente que mais nenhuma dessas mortes ocorra, nem em São Paulo e nem em nenhum outro lugar do Brasil”, diz Adriana.
Menos policiais mortos
O estudo apontou que a implementação das câmeras nos uniformes também reduziu o número de mortes de policiais em horário de serviço e fora. Em 2020, por exemplo, 18 PMs foram vítimas de homicídio enquanto trabalhavam; em 2021, foram quatro (- 77%); já em 2022, seis mortes (- 66%).
Câmeras portáteis em números
No estado de São Paulo, 62 batalhões da PM adotaram, entre 2020 e 2022, as câmeras operacionais portáteis (COP). Segundo o FBSP, os resultados indicam que o programa se mostrou positivo ao reduzir a letalidade provocada por policiais em serviço:
Batalhões que incorporaram o uso das COP tiveram redução de 76,2% na letalidade dos policiais militares em serviço entre 2019 e 2022, enquanto nos demais batalhões a queda foi de 33,3%;
O número de adolescentes mortos em intervenções de policiais militares em serviço caiu 66,7%, passando de 102 vítimas em 2019 para 34 em 2022;
A vitimização dos policiais no horário de trabalho também apresentou redução, registrando os menores números da história nos últimos dois anos.
“Os dados indicam que as COP constituem um importante mecanismo de controle do uso da força letal e de proteção ao policial, mas também que a tecnologia configura um instrumento adicional que não deve ser visto como [solução] para os desafios relativos ao uso da força policial”, afirmaram os pesquisadores.
Para Adriana, a política das câmeras “pode ser um potencial para outros estados, mas o estudo deixa claro que ela tem que ser colocada em prática com cuidado. As câmeras operacionais portáteis não são uma forma de remediar ou solucionar todos os problemas. Elas precisam fazer parte de um programa maior que abranja capacitação, resolução de conflitos, entre outros temas.”
Como funcionam as câmeras corporais da Polícia Militar de São Paulo
Arte/g1
As câmeras operacionais portáteis foram instituídas dentro do Programa Olho Vivo em 2020 e, um ano depois, em 2021, a adoção de um modelo atualizado de tecnologia representou uma mudança significativa: policiais deixaram de escolher se queriam ou não gravar suas ações.
Em São Paulo, os policiais não têm controle sobre o acionamento da COP, a gravação ocorre de forma ininterrupta;
As câmeras são fixadas junto ao peito dos agentes e permitem um ângulo de captação de imagens privilegiado e na altura adequada;
Nessa posição, é possível registrar os “eventos de interesse, como a tomada da maior parte do corpo das pessoas com as quais os policiais interagem, além da captação de regiões de interesse da ação policial, sobretudo suas mãos”;
A fixação é forte o suficiente para impedir que a câmera caia dos uniformes em situações mais críticas, como pular muro e se deitar no chão.
Gravação ininterrupta
Segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as câmeras da Polícia Militar de São Paulo gravam de forma ininterrupta imagens e sons captados.
Os dados (imagens e sons) obtidos sem o acionamento da gravação são chamados pela polícia de vídeos de rotina;
Já os obtidos pelo acionamento proposital do policial são chamados de vídeos intencionais;
Para reduzir custos, a resolução das imagens dos vídeos de rotina é menor que a dos intencionais – e não armazenam o som ambiente;
Os vídeos de rotina ficam arquivados por 90 dias, já os intencionais ficam guardados por 1 ano;
Os policiais em serviço só podem retirar as COP em raros momentos (para ir ao banheiro e para fazer refeições, por exemplo).

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