Ornitólogo escreveu livro que até hoje é considerado a “bíblia” sobre as aves brasileiras. Sick foi responsável pela redescoberta da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Qual jovem não teve um encontro com uma pessoa que se tornou inspiração? Ele pode ser um ator, um músico, um jornalista, um ornitólogo. Muitas vezes, esse encontro não acontece pessoalmente, mas por meio do contato com a obra daquele que é admirado. No quadro Histórias Naturais desta semana, Luciano Lima fala sobre Helmut Sick, uma referência marcante em sua carreira.
Em 1998, depois de rodar bastante pela gigantesca Bienal do Livro do Rio de Janeiro, eu finalmente havia encontrado o que eu tanto procurava. Em um estante, na altura das minhas mãos estava o livro sagrado dos ornitólogos e observadores de aves do Brasil.
Tirei a obra da estante e segurei firme, olhando fixamente para a capa. Naquela época, se eu já tivesse assistido “O Senhor dos Anéis”, poderia ter involuntariamente ter o chamado de “my precious” em voz baixa. Me dirigi para o caixa e coloquei o livro sobre o balcão.
Percebi que a vendedora me olhava com alguma desconfiança. Não a culpo, eu também acharia estranho um moleque magrelo, do interior, com seus 14 anos, querendo comprar um livro técnico que custava R$ 170.
Hoje não parece muito dinheiro, mas em 1999 era bem mais do que um salário mínimo (R$ 136). Tirei o dinheiro da minha carteira colorida que tinha um tigre em alto relevo, contei e recontei, mas antes de finalizar a transação uma voz surgiu do além…
“Luciano, você está comprando um livro?”, perguntou uma das professoras responsáveis pela excursão da escola que havia me trazido até ali. Ela então olhou o preço fixado na capa e imediatamente refez a pergunta antes que eu respondesse a primeira, mas agora em ar de espanto: “Luciano, você está comprando um livro de R$ 170?!”, disse pausadamente. “Sua mãe sabe disso?”
Respondi que o dinheiro era meu e que minha mãe não ia achar ruim. E não ia mesmo, em abril de 1999, já fazia mais de seis meses que eu havia começado a passarinhar e minha mãe já havia se acostumado ao fato do filho ter sido abduzido por “ovis” (objetos voadores identificáveis).
A professora não ficou satisfeita com a minha resposta e pediu para a vendedora aguardar um pouco. Ela queria que eu conseguisse a aprovação da minha mãe antes de comprar o livro. No final do século passado, celular ainda era uma coisa do futuro, e lá fomos nós dois atrás de um orelhão.
Liguei para o trabalho da minha mãe e a resposta dela para a professora foi: “É um livro de passarinho? Não tem problema, o dinheiro é dele e ele só fala nesse livro”. Há meses eu estava juntando mesada para comprar o livro “Ornitologia Brasileira: uma introdução”, ou simplesmente “Sick” para os mais chegados.
Quando descobri que haveria excursão para a Bienal do Livro, convenci minha mãe a me adiantar meu presente de aniversário em dinheiro (R$ 50) para que eu pudesse juntar com minhas economias e comprar a obra mais desejada por aqueles que quisessem aprender sobre aves brasileiras.
Naquela mesma bienal, comprei ainda os dois livros sobre aves brasileiras do grande Eurico Santos, “Da Ema ao Beija-flor” e “Pássaros do Brasil”. Esses bem mais em conta, por R$ 20 cada.
Nas três horas que o ônibus levaria de volta do Rio de Janeiro (RJ) até Resende (RJ), achei que ia ter tempo de curtir folha a folha a minha nova aquisição, mas não consegui fazer isso sozinho. Todos os meus amigos da escola queriam ver o tal “livro de passarinho que o Luciano tinha comprado”.
Vida e obra de Sick
Escrito pelo alemão naturalizado brasileiro, Helmut Sick, a primeira edição do livro “Ornitologia Brasileira: uma introdução” foi lançada em dois volumes em 1985 e imediatamente considerado um dos grandes marcos da ciência dedicada a estudar as aves por aqui.
Helmut Sick, ornitólogo e naturalista alemão
Acervo / Museu de Astronomia e Ciências Afins
Antes mesmo da publicação da primeira edição, Sick já havia começado a trabalhar em uma segunda versão. No entanto, em 1991 ele falece aos 81 anos, antes de poder terminá-la. O próprio Sick deixou recursos guardados para a conclusão do livro. Empreitada que ficou a cargo do seu brilhante discípulo José Fernando Pacheco.
Fernando organizou, revisou e complementou o manuscrito, finalizando a obra, que foi publicada em 1997. Fernando Pacheco é, hoje, um grande e muito admirado amigo meu. Fico me perguntando o que aquele menino de 14 anos perambulando pela bienal acharia se soubesse que um dia seria amigo de um dos nomes da capa de seu precioso livro.
Apaixonado pelo país que escolheu viver, Helmut Sick foi mais brasileiro que alemão. Segundo Fernando, ele corrigia aqueles que o chamassem de alemão. Mais da metade da sua vida foi passada no Brasil. Talvez, fosse melhor se referir a “vidas”, já que é difícil acreditar que o vulto da sua obra tenha sido resultado de uma só vida.
Discípulo direto do grande ornitólogo alemão Erwin Stresemann, Sick chegou ao Brasil escalado por ele em uma expedição oficial do Museu de Berlim, em 1939. O objetivo era explorar as matas do Rio Doce, no Espírito Santo, e Sick tinha interesse em aprender mais sobre o jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi). No entanto, a expedição chega ao fim abruptamente com a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Neomorphus geoffroyi, conhecido popularmente como jacu-estalo
Roberto Almeida / iNaturalist
Contrariando ordens dos seus superiores, Sick decide ficar no Brasil e não retornar à Alemanha, onde certamente seria convocado para a guerra. Notícias de jornais da época mostram que ele passa a ser tratado com um espião alemão em fuga, sendo capturado na região da Serra do Caparaó em 1942 e mantido durante quase três anos preso.
Libertado, Sick decide continuar no Brasil, é contratado pela Fundação Brasil Central, atuando como naturalista da expedição dos irmãos Villas Boas à região do Rio das Mortes e em diversas outras viagens. Essa fase da sua vida é brilhantemente contada em um outro livro de sua autoria, “Tukani – entre os animais e o índios do Brasil Central”. Se você curte natureza e ainda não leu Tukani, faça um favor a você mesmo e leia esse livro.
Em 1960, Helmut Sick ingressa no Museu Nacional do Rio de Janeiro onde permanece até sua aposentadoria, em 1980. É durante esse período que ele realiza, no sertão da Bahia, o que considerava um dos grandes momentos da sua carreira, a redescoberta da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), um “causo” delicioso, mas que fica para outro “Histórias Naturais”.
Anodorhynchus leari, conhecida como Arara-azul-de-lear
Arquivo / Instituto Arara Azul
Se estivesse vivo, Helmut Sick completaria hoje, 10 de janeiro, 114 anos. Mas quem disse que ele não está? Referências não morrem… Sua obra continua e continuará para sempre inspirando novas gerações de ornitólogos e observadores de aves brasileiros.
Quase 25 anos depois da Bienal do Livro de 1998, o meu “Sick” já bem surrado e com a capa colada com durex continua me fascinando, tanto quanto fascinava aquele moleque de 14 anos.
* Luciano Lima é ornitólogo e parte da equipe do Terra da Gente
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