Justiça ignora precedente do STF e mantém proibição aos Tuk-Tuks em SP

Quase dez anos se passaram desde a chegada da Uber no Brasil e ainda estamos discutindo as mesmas coisas. Não obstante as dezenas de milhões de usuários do transporte por aplicativo no Brasil; não obstante os milhões que motoristas geram dirigindo pelas plataformas; não obstante a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe os municípios de proibir o transporte por aplicativos; a Prefeitura de São Paulo decidiu impedir a operação da Grilo[1], startup de Tuk-Tuks.

No último dia 21 de abril, a prefeitura, por meio de decisão proferida pelo Comitê Municipal do Uso do Viário (CMUV), determinou a suspensão imediata da circulação dos Tuk-Tuks elétricos operados pela plataforma Grilo, uma semana após o início de sua operação na cidade de São Paulo. O CMUV fundamentou esta suspensão no Decreto Municipal 62.144/2023, que suspende (um eufemismo para proibir) a utilização de motocicletas para transporte individual remunerado de passageiros por aplicativos no município. A Grilo foi ao Judiciário e, em uma decisão rasa, teve sua liminar indeferida no último dia 3 de maio[2].

A juíza Patrícia Persciano Pires entendeu, em resumo: (i) pela inexistência de direito líquido e certo, uma vez que não teria comprovado que os Tuk-Tuks teriam sido registrados e licenciados; (ii) que não haveria norma no município que regulamente o transporte de Tuk-Tuks; e (iii) que o precedente da ADPF 449 seria inaplicável, posto que não haveria proibição, mas suspensão até a posterior regulamentação pela prefeitura.

Sobre o item (i), se emplacados pelo órgão responsável (Detran-SP), impossível que o município ou o Judiciário precisem se preocupar com a adequação/segurança dos veículos, uma vez que estes terão sido endossados pelos órgãos competentes. O município ainda não pode legislar sobre trânsito e transporte, muito menos o Judiciário avocar essa competência no âmbito municipal.

No mais: a prefeitura exige que Uber e 99 comprovem a propriedade dos veículos cadastrados na plataforma para operar como OTTC? O aluguel de veículos para motoristas de aplicativo é uma atividade corriqueira (Kovi, Localiza e Herz são empresas cujo grande quinhão do faturamento decorre do aluguel de veículos para motoristas de aplicativos). Não há motivo razoável para a decisão judicial exigir isso da Grilo.

O item (ii) é simples de se rebater: inexiste regulamentação sobre os Tuk-Tuks na cidade de São Paulo por um só motivo: artigo 22, inciso XI, da CF. Trata-se de matéria de competência privativa da União. Exigir isso dos municípios para que a Grilo possa operar é condicionar a sua liberação ao rompimento do pacto federativo. Não faz sentido!

No mais, a respeito do item (iii), se não se trata de proibição travestida de suspensão, onde está o cronograma para implementação da regulação do serviço Já há calendário para tomada de subsídios? Há um horizonte próximo para que seja feita análise de impacto regulatório? Suspensão sem prazo para acabar é proibição. Um exemplo clássico do abuso do poder regulatório.

Por esse motivo, o precedente do STF é aplicável à hipótese, o que pode ensejar Reclamação ao STF para que o precedente fixado seja respeitado pelos órgãos públicos e instâncias inferiores. Ademais, é importante mencionar o RE 1.411.688 que aplicou o precedente da ADPF 449 contra as regras municipais que extrapolaram a tese lá fixada.

A proibição executada pela municipalidade e pela Justiça paulista, além de trazer prejuízos à sustentabilidade, já que este meio de transporte elétrico reduz a poluição sonora e a emissão de CO2 na atmosfera, não tem fundamento em lei e ultrapassa os limites regulatórios da atuação da municipalidade.

De forma contrária aos termos da proibição pela prefeitura, de acordo com o CTB[3], os triciclos – ou Tuk-Tuks – classificam-se como veículos de passageiros ou de carga.[4]

Ou seja, já por este viés, vê-se que o enquadramento dos Tuk-Tuks pela prefeitura na categoria de motocicletas para proibir sua circulação não faz sentido.

Em relação aos limites regulatórios da municipalidade, já há entendimento fixado pelo STF no sentido de que não cabe aos municípios regular e, principalmente, proibir o transporte privado remunerado individual de passageiros, bem como não se pode contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF, artigo 22, inciso XI). A tese de repercussão geral foi fixada quando do julgamento do RE 1.054.110 e da ADPF 449.

Ressalva-se também que a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), que, dentre outros, prevê os mecanismos de integração entre os diferentes modelos de transporte, não faz distinção entre os diferentes modais de transporte e deslocamentos de pessoas em seu artigo 3º ao descrever e classificar o transporte urbano[5]. Por isso, não há dúvida de que sua circulação e operação na cidade de São Paulo encontram-se respaldados pela legislação brasileira.

Especificamente em relação à proibição do transporte privado individual remunerado de passageiros por motocicletas, argumento este utilizado pela Prefeitura para proibir os triciclos da Grilo de circularem pela cidade de São Paulo, há diversos precedentes judiciais ao redor do Brasil, favoráveis ao entendimento de que é proibido proibir este modal[6].

Além disso, há pelo Brasil normas municipais e estaduais que tentaram proibir a rodagem e o serviço do transporte individual remunerado de passageiros por motocicletas e que já foram julgadas inconstitucionais pelo STF, por violação à competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte, como ocorreu com os estados de Santa Catarina[7] e do Pará [8]. No mesmo sentido é o entendimento das cortes estaduais, incluindo a do próprio TJSP, o qual se embasou no entendimento consolidado pelo STF[9]:

Ou seja, fica claro que o transporte remunerado privado individual de passageiros, como é o caso da Grilo, não pode ser proibido, nem sofrer suspensão ou restrições regulatórias, ainda mais quando referidas vedações são advindas da Municipalidade. E do ponto de vista normativo, tem-se como claro que o serviço prestado pela Grilo é legal e já está regulado, sendo impossível a sua proibição ou a imposição de restrições que violem a livre iniciativa, nos termos do precedente fixado pelo STF e pela atual redação da PNMU.

[1] De acordo com a Grilo, a companhia é uma plataforma digital de mobilidade urbana, que intermedeia a relação entre passageiros e motoristas, permitindo deslocamentos com triciclos 100% elétricos, de cabine fechada, solicitados por meio de aplicativo, podendo chegar a apenas 50 km/h.

[2] Processo 1024930-03.2023.8.26.0053, 16ª Vara Da Fazenda Pública de São Paulo/SP.

[3] CTB:

Art. 96. Os veículos classificam-se em:

(…) II – quanto à espécie:

a) de passageiros:

(…) 5 – triciclo;

(…) b) de carga:

(…) 3 – triciclo (…).

[4] Modal este utilizado pela prefeitura na limpeza urbana: https://www.capital.sp.gov.br/noticia/equipes-de-limpeza-utilizam-triciclos-eletricos-para-coleta-de-sacos-de-lixo-na-regiao-central

[5] Art. 3º (…).

1º São modos de transporte urbano:

I – motorizados; e

(…) § 2º Os serviços de transporte urbano são classificados:

I – quanto ao objeto:

a) de passageiros;

b) de cargas;

II – quanto à característica do serviço:

(…) b) individual;

III – quanto à natureza do serviço:

(…) b) privado.

[6] Dentre estes, destaca-se julgado de 17/04/2023 do TJSE – Ap. nº 202300703666, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Iolanda Santos Guimarães: https://www.tjse.jus.br/tjnet/jurisprudencia/relatorio.wsp?tmp.numprocesso=202300703666&tmp.numacordao=202312660

[7] ADI 2606, ministro relator Maurício Corrêa.

[8] ADI 3135, ministro relator Gilmar Mendes.

[9] TJSP, Órgão Especial, ADI 2110503-93.2019.8.26.0000, rel. des. Ferreira Rodrigues, j. 11/09/2019.

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