Espionagem e milícias erodem confiança do povo no Estado e no regime democrático

Um estado policial e uma sociedade de joelhos perante grupos paramilitares. Esse é o legado mais nefasto legado por Jair Messias Bolsonaro para o Brasil. Em meio às discussões e divisões entre direita e esquerda acerca do conflito entre Israel e Palestina, parece que deixamos de dar a devida atenção a dois fatos graves da vida nacional que emergiram nas duas semanas. Em primeiro lugar, o escândalo do monitoramento ilegal de cerca de 1,8 mil telefones pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o auxílio de tecnologia israelense. Depois, no começo da semana que se encerra, o Rio de Janeiro foi feito de refém por milicianos que reagiram com incêndios de ônibus à morte de um de seus líderes durante uma operação policial.

Independentemente de o Supremo Tribunal Federal (STF) já investigar o primeiro caso, o governo federal tem a obrigação de prestar à sociedade e demais poderes as mais detalhadas satisfações possíveis sobre o alcance da espionagem promovida por Bolsonaro. Também cabe ao Exército reportar o eventual uso do mesmo tipo de tecnologia que permitiu as ilegalidades praticadas pela Abin. Na ausência dessas satisfações, o Ministério Público Federal deve se pronunciar para assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos relativos à privacidade. O mesmo deve ser feito por ministérios públicos estaduais nas unidades da federação que, como São Paulo e Paraná, também importaram o mesmo equipamento de Israel.

Em relação às milícias, resolver o problema é algo muito distante. Mitigá-lo também parece ser inviável, pois não me parece haver outra solução senão uma intervenção federal. Ainda que ela venha a se estabelecer no governo fluminense como um todo em vez do modelo de intervenção pontual na segurança pública, adotado pela gestão Temer, há o risco de a emenda sair pior que o soneto. Isso porque é grande o risco de cooptação de forças federais por milicianos e traficantes. Ademais, é inevitável lembrar que o general Walter Braga Netto, que foi o interventor federal indicado em 2018, aderiu a Bolsonaro, tendo sido candidato a vice-presidente na chapa da disputa pela reeleição em 2022. Antes, fora Ministro da Defesa no governo antecessor a Lula 3.

Ou seja, em vez de redirecionar o Rio para o curso da legalidade, uma intervenção federal desmoralizaria de vez as Forças Armadas caso o aparato militar fosse acionado. Caso apenas burocratas civis se incumbissem da missão, não teriam meios de se impor às redes de corrupção que permitem a reprodução do modelo de Estado falido que prevalece na região metropolitana da antiga capital federal.

Portanto, a iniciativa de asfixiar financeiramente o crime no Rio, articulada pelo Ministério da Justiça, é o que resta para impedir que voltemos a ver ônibus incendiados por paramilitares. Todavia, está distante de ser uma bala de prata para um problema cuja paternidade remonta a sucessivos governos—democráticos e autoritários, de esquerda e de direita.

Enquanto Israel se movimenta para ocupar Gaza em definitivo e chama a atenção de nossos políticos por razões eleitoreiras, eles tapam os olhos para a perda efetiva do monopólio da força do Estado sobre áreas significativas de nosso território. Se federalizar a segurança pública seria contraproducente num país de dimensões continentais, Brasília precisa ir além das iniciativas de mera articulação de trocas informacionais e ações conjuntas pontuais entre corporações de diferentes unidades da federação. 

Sem o monopólio legítimo da força, um regime democrático não se sustenta, pois passa a tolerar aqueles que, independentemente da denominação, competem entre si para desafiar a ordem que expressa a soberania popular. O povo, cada vez mais descrente da legitimidade e efetividade das instituições, passa a cerrar fileiras com o crime em vez de lutar pela Constituição. Tal cenário não configura uma democracia em transe, mas um regime falido.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.