Justiça de SP condena três acusados pela morte da travesti Laura Vermont por lesão corporal leve; dois são absolvidos

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Jovem tinha 18 anos quando foi espancada em São Paulo. Réus receberiam pena de um ano, mas punição foi considerada prescrita por sair mais de 4 anos depois do crime acontecer. Fotos mostram Laura Vermont antes da agressão, o momento que ela é agredida por cinco rapazes e como seu rosto ficou após apanhar; travesti morreu por causa de traumatismo craniano
Fotomontagem/Reprodução/Divulgação/Arquivo Pessoal/Facebook/WhatsApp
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A Justiça de São Paulo condenou, em júri popular realizado ao longo desta sexta-feira (12), três réus por lesão corporal leve e absolveu dois pela morte da travesti Laura Vermont, em 2015, no bairro de Itaquera, na Zona Leste a capital.
A jovem tinha 18 anos quando foi assassinada por um grupo de rapazes nos intermédios da Avenida Nordestina, que liga o bairro a São Miguel Paulista. Foram dois dias de julgamento até a leitura da sentença.
Van Basten Bizarrias de Jesus, de 26 anos; Iago Bizarrias de Deus, de 24; Jefferson Rodrigues Paulo, 26; Bruno Rodrigues de Oliveira e Wilson de Jesus Marcolino, 22, foram julgados. Jefferson e Bruno foram absolvidos.
A sentença foi lida pelo juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri. Os réus receberiam pena de um ano, mas a punição foi considerada prescrita por sair mais de 4 anos depois do crime.
De acordo com o Ministério Público, o grupo tinha espancado Laura com socos e pauladas após discussão e briga na Zona Leste da capital. Todos respondiam ao processo por homicídio em liberdade.
Laudo do Instituto Médico-Legal (IML) concluiu que a causa da morte da travesti foi em decorrência do traumatismo craniano que ela sofreu. Exames médicos apontaram que a vítima morreu de “traumatismo cranioencefálico causado por agente contundente”.
Agressores causaram morte x suspeita sobre os PMs
A acusação sustentou que os cinco agrediram Laura e provocaram a sua morte, enquanto a defesa reconheceu que três deles agrediram a travesti, mas não ao ponto de provocar o falecimento e defendeu que a ação de dois PMs pode ter ocasionado a morte de Laura. Um dos PMs atirou no braço da jovem, o que deixou uma “tatuagem” — que na linguagem técnica significa uma marca de disparo à queima roupa.
Os policiais militares não foram denunciados pelo Ministério Público, mas foram presos e responderam à época do crime por falso testemunho à Polícia Civil. Em junho de 2022, a Justiça de São Paulo aumentou de R$ 50 mil para R$ 100 mil o valor da indenização por danos morais a ser paga pelo governo de São Paulo aos pais de Laura pelo fato de os policiais militares não terem protegido a jovem. A decisão é na esfera cível.
Em alguns momentos ao longo do júri houve falas transfóbicas, como tratar Laura pelo nome de batismo ou o uso do pronome “ele” ao se referir à jovem morta.
“[Os agressores] Estão na dúvida se Laura era mais homem do que eles. Se tinha um homem na história era ela. Era corajosa, não merecia morrer como morreu”, disse o promotor João Carlos Calsavara, que acusava os réus de matar Laura e, por consequência, representava a família da jovem trans no tribunal.
Documentos e vídeos de depoimento do processo de Laura possuem nomes de registro e não os sociais de Laura e Amanda, o que desrespeita a lei conforme decreto 55.588, de março de 2010 — sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo.
De acordo com o Ministério Público e o advogado da família de Laura, que atuou como assistente de acusação, os cinco réus a agrediram de forma deliberada e sabendo que poderiam causar sua morte. Teriam, segundo eles, usado pedaços de madeira para agredi-la. A tese da acusação é de que os acusados queriam jogar a culpa da morte de Laura aos PMs, que não foram denunciados.
“Isso aqui não é um crime comum, é um crime de raiva, um crime de ódio”, disse o promotor Calsavara. “Vai sobrar para a PM”, completou, em outro momento.
A defesa dos cinco réus, feita pelos defensores públicos Rafael Gomes Bedin e Juliana Beloque, mostrou uma linha do tempo e um mapa com os acontecimentos na noite da morte de Laura, desde uma briga com outra mulher trans, o encontro com os cinco réus e a chegada da PM. Também apresentou a íntegra do depoimento de Amanda, trans que era amiga e estava com ela antes do encontro com os réus.
Na declaração, as duas tiveram uma briga, em que ela sofreu golpes de canivete. Laura então foi embora sozinha e, mais tarde naquela noite, morreu. Amanda declarou que viu Laura usando drogas, o que contradiz laudo feito pela perícia, após a morte, em que não identificou uso de entorpecentes pela jovem morta.
A defesa pediu que três dos acusados fossem condenados por lesão corporal, sem consequência de morte, e a absolvição dos outros dois.
PMs não protegeram Laura
De acordo com a Justiça, dois policiais militares chamados por testemunhas para atender a ocorrência que envolvia Laura foram omissos, truculentos e descuidados. Eles deveriam socorrer a vítima, mas, em vez disso, também a agrediram.
Apesar de os agentes da Polícia Militar (PM) não terem sido acusados de participar diretamente do assassinato da travesti, eles foram considerados irresponsáveis por não a proteger. Os PMs se distraíram e permitiram, por exemplo, que Laura entrasse na viatura policial, dirigindo o veículo até batê-lo num muro.
Um dos PMs então a agrediu e o outro atirou no braço dela. Depois deixaram de socorrê-la. Em seguida, ambos deram uma versão fantasiosa na delegacia, omitindo tudo o que aconteceu. Só contaram a verdade depois de serem confrontados pela Polícia Civil.
E é justamente por causa dessas falhas dos agentes da Polícia Militar que o juiz Kenichi Koyama, da 11ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central, atendeu o pedido da Defensoria Pública para aumentar o valor da indenização à família da vítima.
E manteve a decisão de condenar o governo de São Paulo a indenizar os pais de Laura por entender que o estado foi omisso no caso. Segundo o magistrado, os agentes públicos foram negligentes, imprudentes e ainda mentiram.
Indenização anterior foi de R$ 50 mil
Justiça condena governo a pagar R$ 50 mil à família de Laura Vermont
Em maio do ano passado, o mesmo magistrado havia determinado que o governo pagasse R$ 25 mil a Zilda Laurentino e mais R$ 25 mil a Jackson de Araújo, os pais de Laura. Mas ele reconsiderou o pedido e dobrou esse valor, determinando que cada um deles receba R$ 50 mil.
Em 2020, a Defensoria havia entrado com uma ação na Justiça pedindo que o governo do estado de São Paulo pagasse indenização por danos morais de 4 mil salários mínimos (o equivalente a R$ 4,4 milhões) à família de Laura, mas esse montante não foi concedido.
Atuaram no caso as defensoras e defensores Isadora Brandão Araujo da Silva e Vinicius Conceição Silva Silva, do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial, e Davi Quintanilha Failde de Azevedo, Fernanda Penteado Balera e Letícia Marquez de Avellar, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos.
A Procuradoria Geral do Estado afirmou que “o processo já transitou em julgado”. “No dia 27 de março foi autorizada a expedição de ofício requisitório para pagamento do valor tido como devido”, disse em nota.
Transfobia
Zilda Laurentino e Jackson de Araújo, pais de Laura, e Vinicius Sala, amigo da travesti, aparecem ao lado de foto da vítima no Centro de Cidadania LGBT que recebe seu nome
Reprodução/Divulgação/Arquivo Pessoal/Facebook
“Crimes como esse infelizmente continuam ocorrendo. Pessoas, membros, LGBTs, homossexuais, no caso dessa jovem, ela, por ser trans, foi totalmente espancada. Isso tem que acabar no Brasil. Isso é um crime de ódio”, disse José Beraldo, advogado que representa os interesses da família de Laura no processo criminal.
A Polícia Civil, que investigou o caso, descartou, porém, a possibilidade de o assassinato e a agressão dos PMs diante da travesti terem sido motivados por transfobia. E concluiu que Laura morreu em razão dos ferimentos e das lesões causadas pelos cinco rapazes antes da abordagem policial.
Desconsiderou ainda qualquer participação dos PMs no homicídio, mesmo eles tendo agredido e atirado nela depois que apanhou dos jovens.
Segundo os agentes da Polícia Militar, Laura roubou o veículo da corporação. Advogados que defendem os interesses da família de travesti contestaram essa versão. Eles alegaram que a vítima pegou o carro da corporação para fugir dos jovens agressores.
A travesti Laura Vermont postou esta última foto no Facebook em 2015
Reprodução/Facebook/Laura Vermont
Os agentes chegaram a ser presos por darem depoimentos falsos à Polícia Civil. Depois, foram soltos.
Por meio de nota, anteriormente, a Polícia Militar informou que os policiais que atenderam a ocorrência foram exonerados em 2016 em razão das falhas que cometeram no caso de Laura. O soldado Diego Clemente Mendes, de 23 anos, atirou no braço da travesti. Ele e o sargento Ailton de Jesus, de 44 anos, também deixaram de socorrer a vítima. Ambos alegaram à época que agiram para se defender de Laura.
De acordo com a Justiça, Laura morreu ainda na Avenida Nordestina, antes de ser socorrida pelos próprios familiares dela e levada ao hospital. Mas o atestado de óbito informa que ela morreu na unidade médica. Segundo o laudo do Instituto Médico Legal (IML), a causa da morte foi traumatismo craniano em decorrência das agressões que sofreu dos rapazes. A vítima recebeu socos e pauladas na cabeça.
Réus e vídeos
Vídeo de 2019 mostra como julgamento de acusados de matar travesti, mas júri foi adiado
Câmeras de segurança de uma padaria gravaram as agressões e ajudaram a polícia a identificar os outros jovens. As imagens circularam nas redes sociais à época (veja vídeo acima).
Os rapazes chegaram a ser presos em 2015, mas continuam em liberdade.
O júri popular deles já foi adiado duas vezes. Deveria ter ocorrido em setembro de 2019 e, depois, em março de 2020. Produção de mais provas e pandemia de coronavírus foram os motivos alegados pela Justiça para os adiamentos anteriores.
Vídeo
O prefeito Fernando Haddad participa da inauguração do Centro de Cidadania LGBT Leste ‘Laura Vermont’ e da Unidade Móvel de Cidadania LGBT Leste na Avenida Nordestina em São Miguel Paulista, São Paulo
Peter Leone/Futura Press/Estadão Conteúdo
Outro vídeo mostra Laura caminhando com o rosto ensanguentado. O funcionário do posto que gravou as imagens com o celular pergunta: “O que foi?” A vítima responde e pede ajuda: “Você sabe como é que é. Você me leva para o pronto-atendimento?”
Essa filmagem teria sido feita momentos antes de Laura pegar a viatura dos dois policiais militares que atenderam a ocorrência.
O g1 não conseguiu localizar as defesas dos rapazes e dos PMs para comentarem o assunto até a última atualização desta reportagem.
O assassinato provocou a reação de travestis nas redes sociais. A repercussão foi tamanha que, em julho de 2016, a prefeitura inaugurou o Centro de Cidadania LGBT Laura Vermont em homenagem a Laura. O local fica na mesma via em que ela foi agredida, a Avenida Nordestina, em São Miguel Paulista.

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