Veneza Marajoara, Afuá mostra como viver sem carros; FOTOS

Conhecida como Veneza Marajoara, município paraense é afetada fica em área de várzea e cresceu em palafitas. Bicicletas e adaptações delas são veículos no local. Moradores de Afuá mostram que é possível viver sem carros
Aislan de Paula
Afuá, cidade no arquipélago do Marajó, prova que é possível viver sem motos e carros. No local, chamado de “Veneza Marajoara”, bicicletas e adaptações dela são usadas no transporte de pessoas, a passeio ou em serviços.
A entrada de veículos automotivos é proibida por lei na cidade e assim surgiram as bicitáxis, bicilâncias e outras adaptações usando bicicletas. Para deixar a cidade, só de barco ou táxi aéreo.
“Hoje tem muita história para contar sobre meu invento”, afirma Sarito, morador de Afuá e criador da primeira bicitáxi .
Bicicletas e adaptações são utilizadas pelos moradores de Afuá, no Marajó
Aislan de Paula
Algumas bicitáxis ganham nomes próprios, como “Bat Ferrari”, a união de duas bicicletas com aros e bancos que lembram traços do super-herói Batman, fazendo ainda alusão ao carro italiano de luxo.
Os “ideadores” de bicitáxi, em Afuá, utilizam artifícios para chamar atenção dos clientes, como luzes e música
Aislan de Paula
Alguns moradores investem nas bicitáxis, incluindo lataria, que escondem os pedais, e assessórios como som e luz a partir do uso de bateria, aproximando a estética de seus veículos aos carros de verdade, mas sem deixar de lado o hábito dos moradores de Afuá: pedalar.
Em Afuá não entra carro, nem moto, mas algumas bicitáxis ganham lataria e acessório e escondem os pedais, imitando carros
Aislan de Paula
A peculiaridade local foi foco de estudo. A pesquisadora Vanessa Simões procurou entender em sua dissertação os processos de criação e uso vividos com o bicitáxi a partir da experiência social em Afuá.
“O que mais me encanta nos bicitáxis é como eles constroem a identidade e a vida social da cidade, sendo constantemente reinventados para fins diversos. É o puro suco da inventividade e criatividade brasileira, que é infinita e muitas vezes nasce da carência de recursos, mas vai além dela”, afirma.
O município fica em área de várzea, próximo à foz do Rio Amazonas. Grande parte da cidade é suspensa em palafitas e as ciclovias estão sobre elas, em avenidas de madeira ou pavimentadas.
Bombeiros fazem resgate em “bicilância” em Afuá, no Marajó
Em Afuá há bicitáxis que ganharam nomes de acordo com uso e serviço: a bicilância, por exemplo, é quase uma ambulância, mas os socorristas pedalam para transportar pacientes ao hospital da cidade – veja no vídeo acima.
Max Serrão de Oliveira, coordenador do Corpo de Bombeiros no município, é de outra região do Pará e está há 18 anos em Afuá. Ele se identificou com o modo de viver sob duas rodas.
“Uma cidade única, uma cidade de ar puro e alimentação saudável, além de ser um lugar muito bom pra se morar, por isso estou aqui até hoje”, diz o bombeiro.
“Bicilância” é utilizada para resgate de pacientes em Afuá, no Marajó
Arquivo Pessoal/Max Oliveira
Segundo ele, como na bicilância só há lugar para dois socorristas, quando necessário, os demais acompanham as ocorrências de bicicleta.
O serviço de coleta de lixo também precisou ser adaptado à realidade da região e é feito com carregadores produzidos com madeiras, sob duas rodas.
Carregadores são instrumento de coleta de lixo em Afuá, no Marajó
Arquivo Pessoal
Histórias com bicitáxi
Criador do primeiro “bicitáxi”, Raimundo Souza, 55 anos, conhecido como Sarito, idealizou o veículo em 1995 pensando na junção da bicicleta com táxi, para levar mais crianças para passear.
Criador do “Bicitáxi” conta sobre sua criação, em 1995
“As crianças gostaram e as pessoas começaram a se adaptar a andar. O nome foi a junção de bicicleta com táxi, e a partir daí comecei a cobrar para transportar”, lembra o morador de Afuá.
A produção do novo transporte caiu no gosto da população e as pessoas ganharam autonomia nas adaptações: “Hoje a gente depende do bicitáxi porque ele serve para muitas coisas”, explica Sarito.
Desde então, ele coleciona histórias: “Hoje tem muita história para contar sobre meu invento”, conta – veja no vídeo abaixo.
Sarito Souza, criador do “Bicitáxi” conta histórias vividas com o veículo em Afuá
“Uma vez uma mulher quase que teve o filho no meu bicitáxi , fui levar para o hospital e quase não chego a tempo. Eu cheguei ‘aperreado’ lá, fui varando para dentro do hospital”.

“Outra vez meu próprio invento me deu medo, na frente de um cemitério: fui deixar uma senhora. Na volta, caiu um dos assessórios e veio batendo. Eu olhava pra trás e não via nada. De repente aquilo prendeu e me puxou. Um cidadão passou e me viu tremendo. Ele que viu o elástico que tinha caído e que tava batendo. Aquilo me meteu medo, foi um momento de terror”, relembra o criador sobre momento vividos pedalando sua bicitáxi.
‘Veneza do Marajó’
Vista da cidade de Afuá, no arquipélago do Marajó
Aislan de Paula
O acesso até o município de Afuá é por barco ou táxi aéreo.A cidade paraense fica distante 320 quilômetros de Belém. Com isso, a capital mais próxima é Macapá, no Amapá, distante 84 quilômetros, cerca de 4 horas de barco.
O contexto do nascimento da cidade de Afuá é explicado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA), Agenor Sarraf:
“Como o Marajó é um grande arquipélago, é comum ter cidades que têm lugares feitos sobre madeiras, depois chão batido, depois asfalto. Mas Afuá se formou de maneira singular nessa cartografia física, inclusive com o conceito europeu de cidade, não por acaso intitulam como Veneza do Marajó”, detalha.
Tudo em Afuá, cidade no Marajó, é feito à pé ou de bicicleta
Aislan de Paula
Nascido no Marajó e estudioso da região, Sarraf diz que a realidade de Afuá é consequência da necessidade do povo.
“Os moradores criam suas formas de vida a partir de suas necessidades e criatividade”.
Afuá fica no Marajó, no Pará
Prefeitura de Afuá/Reprodução
Para Sarraf, Afuá reforça as possibilidades de mudanças do século XXI buscadas por grandes cidades para melhor qualidade de vida. “Me parece que as pessoas querem ter acesso aos bens e serviços da vida urbana, mas querem o sossego da vida rural”, diz
“É possível viver sem carros? Sim. Se não tivessem inventado o carro? Se tivessem só charretes? Só as bicicletas? Viveríamos só com isso. Tudo tem a ver com formação cultural e muitas cidades, grandes centros estão replanejando e recolocando bicicletas para controlar fluxo de carro, para dar acesso a espaços com mais segurança e porque é mais barato”, afirma.
Moradores de Afuá, A “Veneza Marajoara”, aproveitam a maré cheia
Aislan de Paula
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