‘Quando acordei, estava amarrada em uma clínica’: pessoas com esquizofrenia relatam momentos de crise; médica explica doença

Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que cerca de 1,6 milhão de brasileiros sofrem com a doença e seus estigmas. G1 ouviu relatos de pessoas que convivem com a esquizofrenia. Mulher se olha em espelho quebrado em imagem ilustrativa à doenças psíquicas
Katarzyna Bialasiewicz/Getty Images
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a esquizofrenia é a terceira causa de perda da qualidade de vida entre os 15 e os 44 anos. Conforme a OMS, cerca de 1,6 milhão de brasileiros vivem com a doença e sofrem com o estigma que ela carrega.
Segundo a médica psiquiatra Ana Luísa Lamounier Costa, da rede pública do Distrito Federal, o transtorno é caracterizado por distorções no pensamento, na percepção, nas emoções, na linguagem, na consciência do “eu” e no comportamento.
O g1 ouviu relatos de duas pessoas com esquizofrenia, uma senhora de 66 anos e uma adolescente de 15 anos. Elas contam como é conviver com a doença, acompanhe abaixo.
‘Acordei amarrada’
A moradora do Distrito Federal Delica Rosa, de 66 anos, foi diagnosticada com esquizofrenia aos 23 anos de idade. Ela teve uma crise e acabou saindo de casa.
“Na primeira crise eu perdi totalmente os sentidos, não sabia nem o meu nome. Me acharam na rua e me levaram pro Ponto Socorro” diz Delica.
Ela foi internada e ficou dias sem lembrar o próprio nome, onde morava ou que fazia. Quando a crise passou, Delica já estava em uma clínica onde permaneceu por cerca de 30 dias.
“Quando voltei a mim, estava numa clínica, amarrada. Naquele tempo era um tratamento muito agressivo, era difícil pra mim. Eu não sabia se eu era agressiva.”
Segundo a psiquiatra Ana Luísa Lamounier, em geral a esquizofrenia começa a se manifestar no final da adolescência e início da vida adulta. Mas é comum pacientes apresentarem alguns sintomas leves desde a infância.
A médica explica que a maioria dos esquizofrênicos não é violenta e que o tratamento adequado diminui ainda mais o risco de agressão.
Delica conta que no primeiro mês de tratamento não gostava de tomar a medicação. Ela diz que quando saia da clínica para ir para casa parava de tomar os remédios por conta própria. Isso só piorava o quadro.
Após anos com o diagnóstico de esquizofrenia, seu laudo atual é de Transtorno Esquizoafetivo. A doença apresenta sintomas da esquizofrenia junto com Transtorno Afetivo Bipolar, descrito por alterações de humor como euforia, depressão ou ambos.
‘Eu achava que ia morrer’, diz adolescente
Maria Luísa tem 15 anos e diz que “desde que se lembra” sofre com distúrbios mentais. Ainda sem um diagnóstico fechado, a adolescente recebe tratamento para Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) com episódios de psicose. Mas também apresenta sintomas de esquizofrenia.
Segundo ela, sua infância foi marcada por sono conturbado e muitos pesadelos. Sua primeira crise foi quando tinha em torno de 10 anos de idade.
Ela lembra bem dos sintomas físicos: “A boca azedou, o corpo esfriou, o ar faltou, tive vômitos e começaram as alucinações”.
“Quando passava o mal-estar físico, começava o inferno, eu achava que ia morrer e aí vinham as alucinações” conta a adolescente.
Maria Luísa diz que durante as alucinações ela vê coisas das quais tem medo. São aranhas, formigas, monstros e até um urso dentro do quarto.
“Eu consigo sentir a coisa me tocando, é assustador.”
Mia, como carinhosamente é chamada pela família, conta que umas das crises que teve recentemente aconteceu depois de um desentendimento com a mãe. “Eu estava chorando muito e ouvia vozes no meu ouvido direito, me dizendo coisas perturbadoras. Dizendo que eu não era uma boa filha, que minha mãe não gostava de mim, que eu era um problema e devia acabar com a minha vida.”
A jovem fala que geralmente as alucinações vêm acompanhadas de vozes. Ela diz que não consegue controlar alguns atos, como se coçar descontroladamente, chegando a ferir o rosto que fica “em carne viva”.
A psiquiatra Ana Luisa Lamounier explica que os dois sintomas mais comuns da esquizofrenia são:
Alterações de juízo de realidade, dos quais o delírio é o mais conhecido
Alterações de sensopercepção, especialmente as alucinações audioverbais, em que as pessoas ouvem vozes que falam com elas
Maria Luísa relata que no começo dos sintomas se sentia muito diferente das outras pessoas, e que quando tentava explicar o que tinha, poucos tentavam entender. Isso causava – e ainda causa – um sentimento de solidão.
A psiquiatra explica que durante as crises, as pessoas com sofrimento psíquico podem se mostrar agitadas. “Os delírios e alucinações fazem com que elas tenham uma ideia distorcida do universo que as rodeia”, diz a médica.
“Como as outras pessoas não entendem o que se passa e nem sabem como ajudar, a reação mais comum é o medo e, com ele, a rejeição”, aponta a psiquiatra.
A adolescente Maria Luísa, com 15 anos, e Delica, de 66 anos, dizem que quem tem uma doença psíquica precisa aceitar que há algo “diferente” e, depois, seguir o tratamento e “tomar direitinho” os remédios. Assim, explicam, é possível ter uma vida mais estável.
Receber apoio e acolhimento também é muito importante para lidar com as doenças.
“Os meus pais me dão força, muita força e amor. Se não fossem eles eu não estaria mais aqui, em alguma das crise eu já teria acabado com tudo, mas eles me dão força,” diz Maria Luísa
Delica concorda, e deixa um recado:
“Para todo mundo que assim como eu, vive com doenças mentais, não desista! Não desista do tratamento nem da medicação. Toda vez que parei de tomar os remédios eu piorei com as crises.”
Entenda o transtorno
A psiquiatra Ana Luísa Lamounier Costa esclarece dúvidas comuns sobre a esquizofrenia e o estigma enfrentado por portadores de doenças mentais. Leia entrevista abaixo:
g1: A esquizofrenia tem tratamento?
Ana Luísa: Existem medicamentos que ajudam a aliviar os sintomas, os chamados antipsicóticos. Eles podem extinguir as alucinações e os delírios e deixar os pacientes mais calmos. Entretanto, alguns sintomas são resistentes, como a dificuldade de raciocinar, de sentir e expressar emoções e de executar as tarefas do dia a dia.
A psicoterapia também pode ajudar o paciente a entender a necessidade do tratamento medicamentoso, diminuir o sofrimento causado pelos sintomas e estimular sua independência. Por isso, é importante que exista um acompanhamento psicoterápico em conjunto com o acompanhamento psiquiátrico.
g1: Qual a causa do transtorno?
Ana Luísa: A esquizofrenia parece ter múltiplas causas. Vários estudos sugerem que as alterações podem começar durante a vida intrauterina, devido a fatores genéticos ou a problemas durante a gestação, como alguns tipos de infecção e complicações obstétricas.
Além disso, o neurodesenvolvimento normal obedece a etapas muito ordenadas e delicadas, que parecem estar alteradas em pessoas com esquizofrenia. Alguns fatores como traumas de infância, migração e uso de cannabis também levam a um risco aumentado de esquizofrenia. Como sozinho nenhum desses fatores é suficiente para produzir o transtorno, dizemos que a esquizofrenia é multifatorial.
g1: Porque pessoas com esquizofrenia são tratadas com medo pela sociedade?
Ana Luísa: Elas podem ser diferentes da maioria. Muitas vezes se vestem de maneira fora do padrão, falam e gesticulam de uma forma característica e têm dificuldade de se expressar. Mas são pessoas com uma vivência absolutamente singular, com experiências internas ricas e, muitas vezes, dispostas a partilhar com quem estiver disposto a ouvi-las.
“Uma pessoa com esquizofrenia ainda mantém a sua individualidade e singularidade como ser humano. Elas não podem ser reduzidas a um estereótipo, são seres humanos que merecem respeito e dignidade como todos nós”, diz a psiquiatra.
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