Risco regulatório no setor de saneamento

Dentre as condições de validade dos contratos de delegação dos serviços públicos de saneamento básico, o Novo Marco Legal do Saneamento inclui a designação pelo Poder Concedente de uma entidade de regulação e fiscalização dos serviços (artigo 11, III, da Lei 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020). Além disso, a ausência de uma entidade de regulação definida é causa de irregularidade da própria operação dos serviços, não apenas da sua concessão. É o que se depreende da definição do art. 3º, XIII, da Lei 11.445/2007.

A ênfase do Novo Marco na existência de uma entidade de regulação não é sem razão. A literatura internacional é farta[1] em mostrar a necessidade da estabilidade dos pactos que viabilizem investimentos privados em ativos específicos públicos (tais como os ativos afetos aos sistemas de saneamento básico, que revertem ao final da concessão para o Poder Concedente). Diante de sinais de instabilidade, o setor privado irá reduzir consideravelmente sua disposição em investir em projetos daquele ente público. Caso invista, irá exigir mecanismos de proteção e garantias, ou, ao menos, precificar tal risco. Esse governo provavelmente pagará mais caro nos próximos projetos, até o ponto em que o retorno exigido se torne proibitivo, ou então dependerá o governo de “novos investidores ingênuos o suficiente para desconsiderar seu histórico de promessas renegadas”[2] para obter novas fontes de investimento.

Daí a necessidade de estabelecer compromissos críveis de que governos não adotarão condutas oportunistas quando investidores se engajarem em contratos de longo prazo e com investimentos vultosos em ativos específicos, como os de concessão.

De maneira geral, a delegação para agências reguladoras é vista como uma solução para o problema de credibilidade do compromisso. O agente (regulador), insulado das pressões políticas, garante a terceiros que o principal não irá modificar suas promessas ex post, ou que seu efeito será mitigado. A criação de agências reguladoras independentes pode fornecer um nível maior de segurança para investidores, aumentando o nível de recursos empregados e reduzindo o retorno exigido. Assim, essa preocupação oferece uma explicação do porquê de ocorrer a delegação. Em verdade, no Brasil, a questão da credibilidade do setor público pode ser considerada um dos principais fatores – talvez o principal – para a criação de agências reguladoras no âmbito dos processos de desestatização dos anos noventa[3].

Entretanto, mesmo após a edição da Lei 14.026/2020, diversas licitações em âmbito municipal foram publicadas sem a designação precisa da entidade de regulação já no edital de licitação. Em algumas licitações nada foi dito, enquanto em outras verificou-se a indicação de que até a assinatura do contrato o município iria criar entidade autárquica ou realizar a delegação a alguma entidade regional (ou de outro município) já instituída. De uma forma ou de outra essa situação gera uma insegurança jurídica relevante e aumenta consideravelmente a percepção de risco regulatório, risco esse que é precificado pelos licitantes durante o certame.

E não basta a definição desde o edital de licitação de uma entidade qualquer para exercício das funções regulatórias. Essa entidade precisa ser verdadeiramente independente, evitando o tão conhecido fenômeno da captura do regulador – seja por interesses privados ou públicos. Não por outro motivo, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) tem trabalhado intensamente na elaboração de normas destinadas ao aprimoramento da governança regulatória das entidades reguladoras subnacionais, tendo publicado, por exemplo, a Resolução 177/2024, que aprova a Norma de Referência 4/2024 (NR 4), que estabelece práticas de governança aplicadas às entidades reguladoras infranacionais (ERIs) que atuam no setor de saneamento básico.

A melhoria dos procedimentos e mecanismos de governança preconizadas pela NR4 tem como objetivos (art. 3º da NR 4) fortalecer o processo decisório, por meio da promoção de práticas de transparência, participação da sociedade e tomada de decisões fundamentadas em evidências, proteger os interesses dos usuários dos serviços públicos de saneamento básico, promovendo maior eficiência na prestação dos serviços; e assegurar a estabilidade, a integralidade e a sustentabilidade da prestação dos serviços públicos de saneamento básico e dos processos regulatórios.

Ainda, a NR 4 indica diretrizes aplicáveis aos titulares dos serviços públicos de saneamento, que devem ser seguidas no exercício de suas atribuições de indicação e acompanhamento das atividades regulatórias, com objetivo de fortalecimento do ambiente institucional de regulação (art. 9º da NR 4).

Outro ponto relevante da NR 4 é a especificação de condições mínimas necessárias para que uma ERI possa ser considerada independente para a tomada de decisões (art. 13), como, por exemplo, a existência de instância colegiada de tomada de decisões regulatórias no âmbito de conselho diretor ou diretoria colegiada; a ausência de tutela e subordinação hierárquica; o estabelecimento de critérios técnicos para nomeação dos membros do colegiado que incluam a experiência profissional em regulação e formação acadêmica compatíveis com o cargo e notório conhecimento em sua área de atuação, e a definição de restrições para indicação dos membros do colegiado, incluindo vedações, tais como: ter atuado como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral, nos últimos 36 meses; ter exercido cargo em organização sindical relacionada ao setor regulado, nos últimos 36 meses; e ter participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela ERI, ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação da entidade.

A ANA desenvolverá metodologia para avaliação da governança das ERIs, com base nas diretrizes da NR4. Trata-se de louvável previsão, tendo o objetivo de incentivar o aprimoramento da atividade regulatória ao dar transparência para a sociedade sobre quais ERIs possuem níveis satisfatórios ou insatisfatórios de governança e estimular que aquelas ERIs que não venham a ser bem avaliadas possam empreender esforços para melhorar sua avaliação.

Além disso, considerando que as ERIs devem comprovar a adoção das normas de referência publicadas pela ANA (conforme artigo 4º-A, §6º da Lei 9.984/2000 e de acordo com os requisitos e procedimentos da Resolução ANA 134/2022), a NR 4 elenca diversos requisitos que devem ser atendidos pelas ERIs, em um prazo máximo de dois anos, para que seja possível considerar que a NR 4 foi atendida por aquela ERI e respectivo ente público.

Espera-se que os entes públicos estejam desde já atentos às diretrizes e requisitos da NR4 no momento de indicar a ERI que irá ser responsável pela regulação de suas concessões, ou mesmo no momento de inclusão ou alteração da ERI responsável.


[1] BALDWIN, Robert, CAVE, Martin e LODGE, Martin. Understanding Regulation. Oxford: OUP, 2012, p. 56; SPILLER, Pablo T, An institutional theory of public contracts: Regulatory implications, Cambridge: National Bureau of Economic Research, 2008; GUASCH, J. Luis. Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions: Doing it Right. Washington, DC: The World Bank, 2004; GOMEZ-IBÁÑEZ, José. Regulating Infrastructure: Monopoly, contracts and discretion. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

[2] GOMEZ-IBÁÑEZ, José. Regulating Infrastructure: Monopoly, contracts and discretion. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 3.

[3] MUELLER, Bernardo; PEREIRA, Carlos. Credibility and the Design of Regulatory Agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, vol. 22, nº 3, July-September/2002.

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