Justiça centrada nas pessoas: imperativo dos novos tempos

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“O tempo não para”, cantava Cazuza no ano de 1988, de promulgação da Constituição Federal. Anos antes, Gilberto Gil clamava: “Ó, tempo rei / Transformai as velhas formas do viver”. O decurso do tempo transforma, elidindo os ludismos e dando à luz o novo. Com o Judiciário e o setor jurídico, não é diferente.

A falta de eficiência, clareza e acessibilidade do Direito vítima toda a população brasileira, privada de serviços públicos de qualidade e de entender a legislação, as decisões judiciais e as instâncias nas quais precisa resolver conflitos ou pleitear direitos[1].

O juridiquês (em inglês legalese e em espanhol abogadezco) é o jargão que permeia o sistema jurídico, piorando a experiência dos cidadãos que o utilizam. Contudo, ao contrário do que possa parecer, uma linguagem mais simples não implica perda de tecnicidade, critério ou precisão[2].

A linguística e o design, mostram, há anos, a urgência de repensar a Justiça e o Direito.[3] A linguagem truncada, hermética e obscura é mecanismo de dominação política e linguística sobre os leigos, criando uma dependência em relação aos profissionais jurídicos, perpetuando desigualdades e exclusão e violando princípios constitucionais[4].

Desde os anos 1990, se sabe que a informação jurídica é comunicada de maneira inadequada[5] e que o design[6] pode revolucionar o sistema jurídico. Mais: em 1550, o rei Eduardo VI da Inglaterra ficou tão irritado com a lei de seu tempo que disse: “Queria que as leis supérfluas e tediosas fossem reunidas em uma só e tornadas mais claras e curtas, para que as pessoas pudessem entendê-las melhor”[7].

Justamente pelo fato de que no Brasil 3 em cada 10 pessoas com idades entre 15 e 64 anos são analfabetas funcionais[8] é que o debate sobre o futuro do Judiciário precisa ser honesto e científico, fugindo a paixões pessoais.

Esse estado de coisas é deletério também em razão de sua inaceitável morosidade. O relatório Justiça em Números de 2022 aponta que o tempo médio para prolação de decisão pelas Cortes brasileiras foi de 2 (dois) anos e 3 (três) meses. Por isso mesmo, não se justifica a manutenção de um sistema autocentrado, desenhado por profissionais jurídicos e legisladores para si mesmos e não para seus usuários finais, os cidadãos – sistema esse que constitui o Judiciário mais caro do mundo, e cujo custo lamentavelmente não se reflete em qualidade[9].

Primeiramente, melhorar a experiência do usuário do sistema jurídico passa longe de populismo barato – é puramente democrático. Em segundo lugar, é sofismática a correlação entre simplificação do Direito e seu esvaziamento – tornar o Direito mais compreensível o enobrece e sofistica. Finalmente, a valorização dos advogados passa por posicioná-los para serem relevantes numa realidade em rápida transformação. Isso também é honrar os impostos dos mais humildes, que bancam uma máquina pública enorme e têm direito a ser adequadamente assistidos.

Nesse sentido, insta destacar iniciativas internacionais de vulto, que buscam repensar o Judiciário e seu funcionamento. A Agenda 2030 das Nações Unidas enfatiza no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 a importância de garantir acesso igualitário à justiça (item 16.3) e da transparência, efetividade e prestação de contas por parte das instituições (item 16.6), além da representatividade nos processos de tomada de decisão (item 16.7).

A OCDE, por sua vez, adotou em 7.11.23 a Recomendação OECD/LEGAL/0498, que trata do design e prestação de serviços jurídicos e judiciais centrados nas pessoas. O instrumento faz diversas menções a temas como justiça centrada nas pessoas mediante o design centrado no ser humano (Legal Design!) e linguagem simples, e foi adotado pelos 38 países membros da OCDE, para promover o acesso à justiça centrado nas pessoas.

Para isso, busca garantir que os serviços jurídicos, judiciais e relacionados sejam: (i) desenhados com as pessoas no centro; (ii) fornecidos em linguagem clara, simples e inclusiva, evitando complexidade; (iii) enderecem necessidades recorrentes de maneira sistêmica, considerando as causas subjacentes; e (iv) sejam desenvolvidos mediante uma combinação de políticas, regulação e outras medidas constantemente melhoradas a partir do feedback de pessoas, negócios e comunidades.

Essa norma reflete os postulados do Legal Design, abordagem sistêmica do Direito, que aplica os princípios e técnicas de design para construir melhores informações, produtos, serviços, organizações e sistema jurídico, a partir de elementos como o Visual Law (comunicação visual de informação jurídica), permitindo passar do juridiquês à clareza e do jargão à inclusão e acessibilidade.

Adicionalmente, foi publicada em junho de 2023 a primeira parte da Norma ISO 24495-1:2023, que é a primeira norma internacional de linguagem simples. Essa parte trata dos princípios e diretrizes que regem a Linguagem Simples, e está prevista a publicação de uma segunda parte, focada em textos jurídicos. Quando a um texto está em linguagem simples (não simplista!), quem o lê encontra o que busca, entende o que encontra e usa a informação com assertividade.

Referida norma ISO foi construída a várias mãos, com a participação de associações internacionais de linguagem simples e do Instituto Internacional de Design de Informação (IIID). A norma define a Linguagem Simples como uma comunicação focada em simplicidade, clareza e efetividade, estimulando sua adoção, enfatizando a importância da estruturação lógica da informação e da utilização de elementos visuais adequados. Combinados, Legal Design e Linguagem Simples tornam o sistema jurídico mais navegável e democrático.

Nessa esteira, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, iniciativa que coloca o Brasil em pé de igualdade com exemplos estelares ao redor do mundo, a exemplo da Argentina[10] e Estados Unidos[11]. O Pacto compreende ações, iniciativas e projetos a serem desenvolvidos em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de adotar linguagem simples, direta e compreensível a todos os cidadãos na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade, dando seguimento ao antes anunciado por meio da Recomendação CNJ 144/2023.

Indiscutíveis a urgência e os benefícios de democratizar a Justiça, aproximando-a das pessoas e melhorando a compreensibilidade da informação e do sistema jurídicos, incluindo a redução de litígios e de sua duração, maior satisfação dos cidadãos e um inegável impacto social positivo, contribuindo para a administração da justiça e maior pacificação social.

Dito isso, de que lado está o futuro: da OCDE, da ISO e do CNJ ou dos Dom Quixotes jurídicos, que confundem cidadania efetiva com “populismo”, clareza com “empobrecimento intelectual” e modernização com “apagamento dos advogados”? A pergunta é retórica.


[1] A linguagem jurídica é pouco compreensível para 87% dos brasileiros (Associação dos Magistrados Brasileiros/Fundação Getúlio Vargas, dezembro/2019) e 88% dos brasileiros apresentam problemas de compreensão leitora (Instituto Paulo Montenegro).

[2] ARAUJO JUNIOR, Claudio Gomes de. O conservadorismo achacoso da linguagem jurídica. São Paulo: Árvore Digital, 2018.

[3] A esse respeito, a obra de Joseph Kimble sobre linguagem simples e o trabalho do Legal Design Lab da Universidade de Stanford.

[4] Exemplificativamente: Art. 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana); art. 5º, caput (igualdade); art. 5º, inciso XXXV (acesso à justiça).

[5] HOWE, Julie E.; WOGALTER, Michael S. The Understandability of Legal Documents: are they adequate? in: Proceedings of the Human Factors and Ergonomics Society 38th AnnuaI Meeting, 1994, pp. 438-442.

[6] Nos anos 1990, foi cunhada a expressão legal design pela Profª Drª Colette R. Brunschwig, que a mencionou pela primeira vez em sua tese de doutorado Visualisierung von Rechtsnormen (Legal Design), publicada pela Schulthess Juristische Medien AG, em 2001, na Suíça.

[7] FISCHER, Heloisa. Clareza em textos de e-gov, uma questão de cidadania. 2017. Monografia (Especialização em Cultura do Consumo) – Faculdade de Ciências Sociais. PUC Rio, 2017.

[8] Relatório do Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF) de 2018.

[9] De acordo com levantamento da Secretaria do Tesouro Nacional divulgado em 24.1.24, o gasto brasileiro com o sistema de Justiça é quase três vezes maior do que a média dos 53 países analisados pelo governo.

[10] Projeto Justicia Aberta, premiado com menção honrosa no World Justice Challenge 2021.

[11] Veja mais em: https://justiceinnovation.law.stanford.edu/.

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