O ressurgimento do kouri-vini, língua perdida dos EUA nascida da escravidão

O idioma, nascido nas plantações onde pessoas escravizadas trabalhavam em Louisiana, desapareceu lentamente, até que um movimento buscou resgatá-lo. O kouri-vini nasceu entre os africanos escravizados que participaram da construção dos Estados Unidos
ALAMY
No bar Hideaway on Lee, na cidade de Lafayette, no Estado americano de Louisiana, Cedric Watson canta a música Oh, Bye Bye em francês da Louisiana.
A canção sempre faz o público se levantar das cadeiras. Todos parecem conhecer os passos intuitivamente e começam a dançar de forma natural, como se estivessem limpando um lagostim — outro costume local.
Watson comprime o fole do seu acordeão Hohner, soltando a batida, enquanto sua banda, chamada Bijou Creole, toca washboard (a tábua de lavar usada como instrumento musical, também conhecida como frottoir) e dedilha um ritmo alegre na guitarra.
Dançarinos com chapéus de cowboy logo começam a rodopiar pelo salão com a rapidez de quem mexe um guisado na panela.
Watson — que foi indicado ao Grammy — passa para um ritmo mais lento, com uma versão de Ma Petite Femme em blues. O público começa a dançar valsa, graciosamente. Ele troca o acordeão por um violino e muda de idioma, passando do francês de Louisiana para o kouri-vini, uma língua ameaçada de extinção.
Cedric Watson é um dos principais talentos contemporâneos da música zydeco americana.
Zydeco é a música tradicional dos povos crioulos de Louisiana — o grupo étnico histórico que descreve pessoas mestiças, descendentes de africanos e colonizadores europeus na época colonial dos Estados Unidos.
A música zydeco mistura elementos do blues, R&B e soul — e se baseia principalmente em técnicas de percussão que refletem suas raízes afro-americanas e afro-caribenhas. Suas letras são compostas em inglês, francês de Louisiana e kouri-vini.
Cedric Watson se dedica a reviver o idioma kouri-vini, ameaçado de extinção
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Watson faz parte de um movimento que pretende reviver o kouri-vini — nome histórico do idioma crioulo falado em Louisiana, que foi adotado para evitar confusão com outros usos da palavra “crioulo”, como para definir a etnia, estilos musicais e tradições culinárias.
O próximo álbum de Watson tem lançamento previsto para meados de 2023, e será gravado principalmente em kouri-vini.
Atualmente, menos de seis mil pessoas falam o idioma. Mas, no início do século 20, o kouri-vini era falado por grande parte da população crioula da região conhecida como Acadiana, que reúne 22 paróquias no sudoeste de Louisiana.
Este bolsão cultural único dos Estados Unidos também é chamado de Terra Cajun. Mas, muito antes da chegada dos acadianos francófonos, ou cajuns, da Nova Escócia (no Canadá) em 1755, já havia uma população muito maior de crioulos que falavam francês — pessoas com raízes europeias e africanas nascidas em Louisiana.
Graças, em grande parte, a uma geração de músicos dedicados à sua preservação, o idioma kouri-vini está renascendo. E Watson, que se apresenta em todo o mundo, se considera um embaixador da língua e da cultura crioula.
Símbolo de identidade
“Quando entrei para essa banda, em 2011, eu me identificava simplesmente como afro-americana. Mas, agora, eu também me identifico como crioula”, afirma Desiree Champagne, responsável pelo washboard na banda de Watson.
Para ela, “a importância de preservar a cultura e a identidade é compreender quem você é e de onde você vem, do que você faz parte”.
O kouri-vini se originou em Louisiana, mas, no início dos anos 1900, o idioma atravessou a fronteira e se espalhou para o leste do Texas, onde Watson nasceu. Ele cresceu ouvindo familiares mais velhos conversando sobre a vizinhança naquele idioma.
Quando eles começaram a morrer, Watson, que é afro-americano, percebeu que seu idioma ancestral estava desaparecendo com eles. Ele começou então a usar o palco como plataforma para revitalizar a língua profundamente enraizada no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas.
No início do século 18, as pessoas recém-escravizadas criaram uma mistura dos seus idiomas nativos da África Ocidental com o francês utilizado pelos colonizadores para se comunicar nas plantações de açúcar e índigo de Louisiana onde trabalhavam.
“É o primeiro idioma que todos esses africanos, provenientes de diferentes tribos e sistemas de castas, falavam quando eram escravizados”, explica Watson.
“Eles tinham essas línguas pidgin (língua nascida, normalmente de forma espontânea, do contato linguístico e social entre povos que falam idiomas diferentes) que falariam por duas gerações, mas que acabaram se tornando uma língua organizada, que é o crioulo [kouri-vini].”
O nome kouri-vini vem da pronúncia, em crioulo, dos verbos franceses courir (correr) e venir (vir).
Watson preserva o idioma não só com suas apresentações ao vivo, mas também com seu programa de rádio La Nation Créole, na emissora KRVS FM (88,7 MHz), de Lafayette. Ele toca ritmos crioulos de Louisiana, assim como de todo o mundo de língua crioula francesa, como Haiti e Guadalupe.
A música zydeco é tradicionalmente cantada em inglês, francês de Louisiana e kouri-vini
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Até pouco tempo atrás, o kouri-vini era menosprezado como uma língua inferior, falada por pessoas sem educação formal.
“A maioria das opiniões da sociedade sobre as línguas e as variedades linguísticas são, na verdade, opiniões sobre as pessoas que falam esses idiomas”, afirma Marguerite Justus, linguista e especialista em desenvolvimento comunitário do Conselho de Desenvolvimento dos Franceses em Louisiana (CODOFIL, na sigla em inglês).
“Se as pessoas que falam um certo idioma ou dialeto forem percebidas como tendo baixa posição social, somos inclinados a reconhecer sua forma de falar da mesma forma”, explica .
É interessante observar que nem todos os falantes de kouri-vini eram pessoas negras. Durante os séculos 19 e 20, houve pessoas brancas, especialmente crianças, que aprenderam o idioma com os empregados da casa.
O poeta e dramaturgo de Louisiana Alfred Mercier, no seu livro Study on the Creole Language in Louisiana (“Estudo sobre o idioma crioulo na Louisiana”, em tradução livre), de 1880, afirma que ele falava apenas kouri-vini em grande parte da sua infância porque era a língua da sua cuidadora. Mas seus pais o censuravam por usar o idioma.
O declínio do kouri-vini começou com a compra de Louisiana, em 1803. Quando o território foi adquirido pelos recém-formados Estados Unidos, as pessoas que não falavam inglês foram pressionadas a aprender a língua e a cultura do novo país – um processo que só aumentou com a promoção de Louisiana a Estado, em 1812.
Outro golpe sobre o kouri-vini veio durante a Primeira Guerra Mundial, quando era considerado falta de patriotismo falar qualquer idioma que não fosse o inglês.
Mas, atualmente, os cidadãos de Louisiana estão interessados em retomar o kouri-vini como seu patrimônio. Há movimentos para fazer o idioma reviver, que envolvem desde estudantes até acadêmicos reconhecidos
Na última década, cada vez mais adultos e crianças começaram a aprender kouri-vini online. A associação local Louisiana Historic & Cultural Vistas oferece aulas online de kouri-vini — e suas vagas são bastante concorridas. Parte desse interesse vem de jovens que cresceram ouvindo os mais velhos falarem o idioma e, agora, querem ganhar fluência.
Uma nova geração de falantes de kouri-vini também está produzindo podcasts, apresentando programas de TV e até escrevendo livros no idioma.
O kouri-vini se desenvolveu entre os africanos escravizados nas plantações coloniais da Louisiana
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Com apenas 20 anos, Taalib Auguste se autoproclamou ativista do kouri-vini. Ele criou o programa de TV LA Créole Show no canal online Télé-Louisiane, de Lafayette, para promover a cultura crioula.
Auguste chegou a escrever um livro em kouri-vini chamado Koushma (“Pesadelo”, em tradução livre), inspirado na história de um homem escravizado que ele ouviu dos avós.
Como o kouri-vini foi tradicionalmente passado de forma oral ao longo das gerações, é um desafio escrever no idioma. O primeiro estudo abrangente foi o Guia de Ortografia do Idioma Crioulo da Louisiana, publicado online em 2016.
O linguista e pesquisador Oliver Mayeux, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, colaborou com o guia — e é um dos principais incentivadores do ressurgimento do kouri-vini. Seu pai tinha ascendência crioula de Louisiana e, por isso, ele se dedica a preservar o idioma intimamente relacionado com a sua identidade.
“A criação de uma nova língua nas plantações da Louisiana colonial é um testemunho do fato de que aquelas pessoas escravizadas eram simplesmente isso — pessoas. Pessoas com sua própria cultura e tradições, esperanças e sonhos”, afirma Mayeux.
Para ele, “o idioma é um elo vivo com aquele momento. As histórias dos seus falantes precisam sobreviver. Suas palavras precisam ser lembradas.”
Mayeux e um grupo de colegas colaboraram com Ti Liv Kréyòl (“Pequeno livro de crioulo”, em tradução livre), o primeiro livro para estudantes de kouri-vini, publicado em 2020. Ele foi ilustrado por Jonathan Mayers, artista e poeta falante de kouri-vini, que trabalha para promover a cultura e a língua crioula.
Atualmente, a música zydeco é uma das melhores formas de apresentar o kouri-vini para os turistas no sudoeste de Louisiana.
As músicas fazem as pessoas se sentirem bem e podem ser ouvidas em toda parte. Elas vêm das varandas das casas e dos quintais onde se prepara o lagostim.
Flannery Denny adora a música zydeco, tanto que se mudou do Estado de Nova York para Louisiana.
“A música reúne as pessoas cruzando as fronteiras que costumam dividi-las”, afirma Denny.
“Na pista de dança, a idade, a geografia e a política não importam. As pessoas estão concentradas em aproveitar o momento.”
Corey Ledet, vocalista da banda Corey Ledet & His Zydeco Band, é outro músico afro-americano indicado para o Grammy que se dedica a manter vivo o idioma kouri-vini.
Ele pode ser visto em Lafayette se apresentando no Feed & Seed ou no Blue Moon Saloon, submetendo literalmente o acordeão à sua vontade, enquanto simultaneamente toca um bumbo para produzir os ritmos sincopados de origem africana que são a base da música zydeco para dançar.
Ledet foi criado no Texas, mas visitava com frequência sua família em Parks, em Louisiana. Seus familiares falavam kouri-vini, mas não o incentivaram a aprender a língua.
Para ganhar proficiência, ele estuda com Herbert Wiltz, um dos fundadores da organização sem fins lucrativos C.R.E.O.L.E. Inc., dedicada a preservar e promover a cultura crioula. O nome da organização vem da sigla em inglês para Enriquecimento Cultural, Criativo, Educacional, de Oportunidades e Linguístico.
Ledet participa da La Table Kreyol (“A Mesa Crioula”) de Wiltz, que oferece aos estudantes a oportunidade de praticar conversação.
“Meu objetivo é ganhar fluência suficiente não só para falar, mas para ler e escrever, e poder oferecer isso para outras pessoas, de graça”, afirma Ledet.
“É importante manter [o idioma] vivo, pois ele certamente é uma parte de Louisiana.”
Seu próximo álbum, Médikamen (“Medicação”), será inteiramente em kouri-vini. Ledet é o sucessor do falecido músico Clifton Chenier, o “Rei do Zydeco”, que fez diversas gravações no idioma.
“A música é o meu remédio”, afirma Ledet.
“Sempre que me sinto triste, ela me levanta. Quando uma pessoa ouve zydeco, não importa o que esteja acontecendo na sua vida; ela coloca um sorriso no rosto.”
Ledet espera que a música também coloque algumas frases em kouri-vini na boca das pessoas.

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