Após ficar sem certidão de nascimento para o filho, mãe cria associação que ajuda pessoas intersexo: ‘Protegendo os direitos’


Em outubro é celebrado o “Mês da Visibilidade Intersexo”. Termo é usado para se referir a pessoas que nascem com características sexuais congênitas, que não se enquadram nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos. Conheça nesta reportagem a história de Jacob. Escolha do nome, cores do enxoval, decoração do quarto: todo o processo da espera de um filho é idealizado pela família. Inclusive, para a descoberta do sexo do bebê. Pela regra, é o ultrassom que mostra se é menino ou menina. E foi por esse exame que Thaís Emília Campos, moradora de São José do Rio Preto (SP), descobriu que algo estava diferente, mesmo antes de ele nascer.
📲 Participe do canal do g1 Rio Preto e Araçatuba no WhatsApp
Durante a gestação, Thaís já sabia que seu terceiro filho mudaria sua vida para sempre. Só não imaginava que seria tanto. Ao g1, ela lembra que, logo nos primeiros exames do pré-natal, já aparecia uma alteração cardíaca e no cérebro do bebê. Depois, descobriu o problema na formação genital.
Jacob nasceu com a variação em setembro de 2016. No caso, ele não tinha os testículos e o pênis era bem pequeno.
Jacob, bebê intersexo que motivou luta da mãe na busca por direitos do filho, nasceu em Rio Preto (SP)
Arquivo pessoal
Por ser diferente quando nasceu, Thaís se deparou com problemas para registrar o filho. Os médicos, segundo ela, se recusaram a entregar a Declaração de Nascido Vivo (DNV), um documento essencial para certidão de nascimento.
Segundo Thaís, eles diziam não saber se Jacob era menino ou menina. Sem esse documento, a mãe ficou sem a certidão, o cartão SUS, CPF e até sem licença maternidade.
Thais Emília e Beto posam com uma foto de Jacob, que virou tatuagem na panturrilha do pai
Fábio Tito/g1/Arquivo
Foi a partir disso que a mãe do noroeste paulista criou uma associação para dar suporte e ajudar pessoas intersexo, que nascem com variações física ou genética na definição do sexo, depois de enfrentar dificuldades com o nascimento do filho.
“Eu tive que fazer uma ressonância fetal, que é um exame raro de pedir na gestação, só pede quando tem alguma questão na formação genital. Eu estava com 27 semanas de gestação, quando veio o diagnóstico também de que tinha ali uma condição intersexo”, lembra Thaís.
Em outubro é celebrado o “Mês da Visibilidade Intersexo”. O termo é usado nas ciências sociais para se referir a pessoas que nascem com características sexuais congênitas, que não se enquadram nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos.
Na medicina, o termo usado é Distúrbio de Desenvolvimento Sexual (DDS). Conforme a geneticista e chefe da disciplina de genética da Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp), Agnes Cristina Conte, a intersexualidade é um erro biológico.
Jacob nasceu intersexo em setembro de 2016, em Rio Preto (SP)
Thaís Campos/Arquivo pessoal
“Se refere a um termo médico, a um erro biológico. Então, DDS é um defeito de nascença. Não é a mesma coisa que ‘hermafrodita’, que é um termo que não se usa mais. No caso do hermafroditismo você tem dois tecidos gonadais funcionais, ele pode ter um ovário de um lado e o testículo do outro”, esclarece Agnes.
Thaís lembra que, na época, encontrou muita dificuldade para registrar o filho.
“Eu procuro a supervisão do INSS e ele fala: ‘se seu filho tivesse nascido natimorto você tinha direito [ao documento], mas nesses casos não tem’. Eu falei: ‘que absurdo, então ele está no meu colo, ele existe, o parto foi gravado, e ele não pode existir perante a lei. Ele não é sujeito de direito apenas porque ele nasceu sem testículo. É isso mesmo?’ Ele falou ‘é'”, pontua Thaís.
Jacob nasceu intersexo em Rio Preto (SP)
Thaís Campos/Arquivo pessoal
Jacob não chegou a participar de todo o processo da mãe para garantir seus direitos. Depois de paradas cardíacas, em maio de 2018, com quase dois anos, ele morreu após fazer uma cirurgia de urgência para corrigir um problema no coração.
O menino teve complicações pós-cirúrgicas no fígado e não resistiu.
Jacob nasceu intersexo em Rio Preto (SP)
Thaís Emília/Arquivo pessoal
Pessoas intersexo
Os dados sobre o número de pessoas intersexo no mundo são incertos. De acordo com uma estimativa de 2017 do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), entre 0,05 e 1,7% da população é intersexo, o que pode significar aproximadamente 167 mil pessoas só no Brasil.
O reconhecimento da intersexualidade pode acontecer logo ao nascimento, mas é possível que as variações, que são mais de 150, só sejam percebidas durante a adolescência ou vida adulta.
Jacob, Thaís e Beto, em Rio Preto (SP)
Thaís Campos/Arquivo pessoal
“Filhos não são perfeitos e nem sempre estão dentro daquela perfeição desejada. Uma vez uma paciente me perguntou: ‘doutora, o que eu faço, porque eu tenho condições financeiras de fazer vários exames e de me precaver, então o que eu faço para ter um filho sem problemas?’. Eu olhei com muita naturalidade para ele e disse: ‘não tenha filhos’, porque você também não é perfeito, então não exija perfeição, nem mesmo biológica, de ninguém”, enfatiza Agnes.
Criação da Abrai
Jacob morreu antes de completar dois aninhos em São José do Rio Preto (SP)
Thaís Campos/Arquivo pessoal
Jacob chegou a andar, falar e brincar. Principalmente, ensinou os pais sobre a importância de lutarem pelo respeito e validação da causa intersexo. Diante da dor da perda, Thaís teve a ideia de criar um projeto para transformar a realidade daqueles que são acometidos com a condição.
Foi em 2020 que a mãe do Jacob criou a Associação Brasileira de Intersexos (Abrai), que tem escritório em Rio Preto, e, hoje, atende mais de duas mil famílias que precisam de atendimento médico e psicossocial.
Thaís criou a Abrai para ajudar famílias com pessoas intersexo
Thaís Campos/Arquivo pessoal
Foi graças a Abrai que as crianças que nascem intersexo podem ter o registro na certidão de nascimento com o sexo ignorado.
“A gente consegue a desburocratização do registro civil de bebês intersexo. Em 2021, eles passam a ter o direito de ignorar o sexo. Ignorou o sexo é emitida a certidão de nascimento, o que acaba protegendo os direitos tanto da mãe como da criança intersexo”, salienta Thaís.
Intervenção cirúrgica
Agnes Conte, geneticista do HCM em Rio Preto (SP)
Chico Braúna/TV TEM
No hospital, Thaís lembra que os médicos sugeriram a intervenção cirúrgica de redesignação sexual, ou seja, definir o gênero por meio do procedimento de reconstrução da genitália. Mas, a mãe optou por não autorizar, por se tratar de uma questão irreversível.
“Foi complicado por causa da parte da pressão para a cirurgia. Mas, não era meu maior sofrimento. Para mim é muito mais fácil falar que ele era intersexo do que das cardiopatias que ele teve e o que eu vi dentro de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A cardiopatia era minha maior preocupação, ele poderia morrer a qualquer momento, ele era paliativo, então eram nossas maiores preocupações”, lembra Thaís.
O Conselho Federal de Medicina regulamenta que os tratamentos para as diferenciações sexuais são de urgência social e biológica e a condição gera, em certos casos, riscos de doença, como o câncer, a longo prazo.
Mila Tori Correa Leite, médica na Universidade Federal de São Paulo
Reprodução
Nesses casos, segundo a geneticista, a busca pelo diagnóstico para uma intervenção cirúrgica precoce é o adequado. As cirurgias são regulamentadas no Brasil. Mas, a orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é que pessoas intersexo participem da decisão sobre a cirurgia.
De acordo com a médica cirurgiã uroginecológica pediátrica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Mila Torii Correa Leite, as cirurgias reconstrutivas em pessoas intersexo ainda geram debate.
“A gente faz uma reconstrução plástica estética, onde envolve essa rescisão irreversível e por isso esse debate das cirurgias no bebê, na infância, porque são cirurgias que são irreversíveis e a gente não está tendo consentimento deste sujeito”, detalha Mila.
Novela
A luta de Thaís também chegou até a produção da novela Renascer, da Rede Globo. A história de Jacob inspirou a criação da personagem, Cacau, filho de Teca. Na primeira versão da novela, a personagem Buba era hermafrodita. Na releitura, a Buba é uma jovem transgênero.
Bebê intersexo nascido em Rio Preto é inspiração para novela na Rede Globo
A mudança na história original provocou protestos na comunidade pelas redes sociais: foi assim que conseguiram chamar a atenção da produção (assista acima).
A história de Jacob ultrapassou até as barreiras territoriais e chegou ao conhecimento da universidade de Oxford, na Inglaterra, quando um grupo de produtores procurou a mãe para que topassem gravar um documentário sobre intersexualidade.
A equipe do documentário falou para Thaís que, ela e Beto são os primeiros pais no mundo a assumirem publicamente ter um filho intersexo e a lutarem pelos direitos dessa criança.
Veja mais notícias da região no g1 Rio Preto e Araçatuba.
VÍDEOS: confira as reportagens da TV TEM
Adicionar aos favoritos o Link permanente.