‘São duas mães’: casais de mulheres desmistificam dupla maternidade em SC

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“São duas mães, não tem pai” é uma resposta comum para os muitos comentários e curiosidades que, segundo famílias de dupla maternidade, refletem preconceitos maquiados pela boa intenção. Casais de mulheres contam quais são os desafios e surpresas da maternidade pouco antes do Dia das Mães, celebrado neste domingo (14).

Dupla maternidade ainda é vista com estranheza, contam mães

Daniele, Ângela e a filha, Catarina. Em seguida, Julia e Mayara com a filha, Aurora Maria. Em terceiro, Carola e Amábile com a filha, Heloísa. – Foto: Arquivo pessoal/ Reprodução/ ND

Segundo a Arpen-SC (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais de Santa Catarina), 177 crianças com duas mães foram registradas no Estado em 2022. O número é cinco vezes maior que em 2012, quando houve apenas 33 registros.

Em média, 168 crianças de famílias nesta configuração foram registradas em cinco anos, entre 2018 e 2022. Em 10 anos, foram 1.435 crianças registradas com dupla maternidade.

Procurar ‘qualquer homem na noite’ para engravidar

Nascida em março deste ano, Heloísa, filha de Carola e Amábile Carioni Tonet, completou um mês no final de abril. As mães, que moram em Florianópolis, contam que os desafios da dupla maternidade começaram antes mesmo de chegarem na clínica de reprodução assistida, onde fizeram a fertilização in vitro que gerou a bebê.

Pouco antes de começar o processo para gestar a filha, Carola conta que foi ao ginecologista e contou ao médico o interesse de ser mãe junto com a sua esposa. Ela conta que a consulta foi regada a perguntas e comentários invasivos.

“Ele sugeriu que, por eu ser nova e saudável, eu me relacionasse com qualquer homem na noite. Ignorando totalmente o fato de eu ser lésbica e casada. Fiquei me perguntando se é o tipo de sugestão que ele faria para uma paciente heterossexual cujo marido tem algum problema de fertilidade”, relembra.

‘Mas como fizeram?’ E o pai?’

Outro casal, formado por Júlia Guimarães e Mayara Jacinto, também conta que recebeu muitas perguntas ao anunciar a gravidez. Elas moram em Palhoça e são mães de Aurora Maria, de nove meses.

“Mas como fizeram? E o pai? O óvulo é de quem? Quanto custou? [Perguntaram] antes mesmo de dizer parabéns. Como se essas questões fossem mais importantes do que a notícia em si”, lembra Júlia.

Júlia conta ainda que a esposa Mayara não recebeu parabéns quando anunciaram a gestação.

Preconceito com a mãe não gestante

Embalando a filha nos braços, Amábile conta que procurou a rede de saúde quando decidiu que, assim como a mãe gestante, também iria amamentar Heloísa. Os médicos e enfermeiros afirmaram ao casal que elas foram as primeiras da Grande Florianópolis a buscar o tratamento para estimular a produção de leite materno e induzir a amamentação.

Para Amábile, essa foi uma das surpresas boas que a dupla maternidade trouxe. No entanto, ela conta que se depara constantemente com comentários que tentam desvalidar sua maternidade.

“Quando eu postei meu relato de amamentação como mãe não gestante no Tiktok, uma pessoa comentou que se eu quisesse ser mãe era só eu deitar com um homem. São violências de todos os lados.”

Carola e Amábile são mães de Heloísa

Amábile (com a bebê no colo) divide a experiência de amamentar Heloísa – Foto: Arquivo pessoal/ Reprodução/ ND

Amábile diz que, em comparação com a esposa, recebe mais comentários que deslegitimam sua maternidade e tentam enquadrá-la em um papel de pai, que não existe na família.

Ela conta que já foi parabenizada por ser pai e questionada sobre como estava sendo a paternidade. “Como se por eu ser lésbica, não feminilizada, eu queira estar no papel de um pai.”

‘Ela não tem pai, tem duas mães’

Já em Joinville, as mães de Catarina, Daniele Ramos (que teve a gestação também por fertilização in vitro) e Ângela Adamek, comemoraram o primeiro ano de vida da filha nesta quinta-feira (11).

Elas contam que ignoram os olhares tortos e não dão ênfase aos comentários e perguntas ofensivas. “A pergunta mais inadequada é perguntar quem é o pai. Ela não tem pai, ela tem duas mães. Teve um doador e ponto final”, diz Danielle.

Ângela aponta ainda uma contradição no argumento que algumas pessoas usam para sustentar a deslegitimação da mãe não gestante:

“Em um relacionamento heterossexual ninguém vai perguntar para mulher quem é o verdadeiro pai da criança, em caso de infertilidade do marido. Quando é adotado, ninguém vai perguntar quem são os verdadeiros pais também. Não é só a Catarina que não tem pai.  Por ‘N’ motivos muitas famílias hoje não têm essa presença paterna. Seja por abandono, ou porque é criado pela avó, ou só por uma mãe”, pontua Ângela.

Medo de perder a rede de apoio

Amábile e Carola contam que as falas que deslegitimam a dupla maternidade já vieram da família, de amigas e de profissionais da área da saúde. Mesmo diante do desconforto, elas acabam relevando essas situações por medo de perder a rede de apoio.

“Se a gente dá uma resposta mais agressiva, acaba afastando as pessoas. Ao mesmo tempo que a gente recebe as violências, a gente não tem espaço para devolver o desconforto na nossa resposta. Além de ouvir os comentários, a gente ainda tem que ‘pisar em ovos’ e responder de forma gentil”, afirma Carola.

“É preciso que a sociedade entenda que o doador não é o pai, ela [Catarina] não tem pai, então não vai sentir falta de algo que nunca teve. Essas palavras machucam, e ficar explicando [que são duas mães e não existe um pai] cansa”, diz Ângela.

“Uma coisa que a gente sempre tem que explicar, quando as pessoas permitem certo diálogo, é que isso independe da intenção. Você não quis ser lesbofóbico, você não quis deslegitimar a maternidade da mãe que não gestou, você não teve essa intenção, mas foi o que aconteceu”, pontua Carola.

Vitória na Justiça

Na semana do Dia das Mães, um casal que não conseguiu registrar o nome da mãe na certidão de nascimento da filha no cartório teve a dupla maternidade reconhecida na Justiça em Florianópolis.

Segundo a DPESC (Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina), o direito foi negado ao casal pelo fato de as mulheres terem realizado uma técnica de reprodução assistida caseira para engravidarem. O processo consiste na utilização de um material genético de um doador anônimo para fins reprodutivos.

Nesta quarta-feira (10), o juízo da 1ª Vara da Família da Comarca da Capital decidiu em favor da família, que não teve os nomes divulgados.

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