Vítima de abuso infantil, mulher se torna ativista na proteção de crianças: ‘Sociedade sofrendo por essa violência’


Sheylli Caleffi foi violentada por conhecido da família quando tinha 5 anos e acolhe outros sobreviventes também nas redes sociais. Mais de 69 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes foram registradas no Brasil em 2023; Paraná teve 722 estupros de vulneráveis até abril. Crianças, creches, violência, adolescentes, escola, CMEI, creche, educação, denúncia, Paraná, brincar, Conselho Tutelar, alunos, estudantes
Reprodução/RPC
Uma violência inaceitável sofrida por uma criança que se transformou em uma luta que deveria ser de todos: o ativismo pela erradicação desse tipo de crime e a mão amiga estendida a outros sobreviventes. Esta pode ser uma descrição do que é parte da trajetória da paranaense Sheylli Caleffi.
Aos 40 anos, hoje morando em São Paulo, a professora de oratória usa as redes sociais para discutir a temática, dar orientações e tentar prevenir casos especialmente na internet.
Em uma delas, Sheylli abriu um grupo para acolher vítimas de crimes como o que ela passou — o ouvido atento de diferentes participantes permite a muitos entender que não são culpados pelo que aconteceu.
“Para mudar, cada pequena coisa importa. A gente precisa entender que uma revolução de pensamento não acontece num estalar de dedos, mas que cada compartilhamento, cada vídeo vai somando até virar consenso. Veja o andar com cinto de segurança, por exemplo. […] Esse é meu trabalho”.
“Vou tendo minhas pequenas atitudes com minhas indignações pra melhorar algo que considero não estar legal. No caso da violência contra crianças, mesmo que ela não fale, isso pode desenvolver vários problemas. A gente tem uma sociedade inteira sofrendo por essa violência”, reforçou.
Veja abaixo orientações sobre sinais, cuidados e denúncias.
A hoje comunicadora foi estuprada por um amigo próximo da família quando tinha cinco anos. O caso aconteceu em Pato Branco, no oeste do Paraná.
Sem entender a situação, ela não contou do crime para familiares e criou um bloqueio na memória. Anos depois, em um relacionamento já adulta, percebeu gatilhos e medos que alertavam para uma situação ainda não bem compreendida.
“Eu sempre tive a sensação de que algo tinha acontecido na minha infância, pelo meu relacionamento com a sexualidade, era uma coisa pouco difícil. Eu comparava muito com os meus colegas e falava ‘nossa eu não consigo ter essa desenvoltura’, não consigo gostar dessa intimidade sexual. […] Fui fazer uma terapia muito intensa pra conseguir ter as memórias detalhadas do que foi que aconteceu. Foi um abuso oral. Foi uma coisa horrível. Fiquei imóvel, não soube o que fazer”, relembrou.
Sheylli sofreu violência quando criança e hoje é ativista na proteção de vulneráveis
Foto Autorizada/Arquivo Pessoal
Pesquisa mostra que 70% das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual são do sexo feminino
Violência sexual na infância causa traumas para toda vida: ‘Tínhamos medo e guardamos o segredo pra gente’
Saiba como a escola pode ajudar
Violência presente no dia a dia
Assim como Sheylli, muitas outras crianças e adolescentes foram e são violentados diariamente no Paraná e no Brasil.
Os crimes correspondem desde violência sexual até exploração de imagem da pessoa em vulnerabilidade.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), foram 4.736 estupros de vulneráveis registrados no Paraná em 2022. Só neste ano, até abril, foram 722 casos.
Babá e namorado são denunciados por estupro de menina de 5 anos no Paraná
Funcionário é preso suspeito de abuso sexual contra duas crianças em banheiro de supermercado em Curitiba
Já em todo país, conforme a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, mais de 69 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes tinham sido registradas em 2023 até o dia 3 de maio. São registros de quase 400 mil violações contra o grupo.
Em todo o estado, denúncias podem ser feitas anonimamente pelo canal 181 e também pela internet (acesse aqui). Também é possível usar o canal do Disque 100, do Governo Federal.
Coragem e sobrevivência
No grupo que criou nas redes sociais, Sheylli conheceu e dividiu histórias. Segundo ela, muitas vezes, as pessoas não querem ouvir sobre violência contra crianças e adolescentes por não quererem lidar com a realidade.
“Esse tipo de conexão é muito importante e parte desse lugar, da gente sentir que tem importância que a nossa voz é importante”, relatou.
Para a paranaense, o apoio é parte fundamental para que sobreviventes possam continuar as vidas. Foi assim também no caso dela.
“Nesse processo terapêutico, foi coragem pra lidar com o que eu sabia que estava lá, mas eu tinha muita dificuldade de olhar, reviver. Com apoio foi possível. E aí, na sequência, foi muito difícil, porque logo depois eu entendi meu medo de andar num carro no banco de trás era medo, que tinha a ver com essa violência que sofri, porque eu fui transportada no banco de trás. […] Então, você começa a saber que são reações, traumas”, contou.
E, para além disso, a importância de se compreender que a culpa nunca é da vítima.
Sheylli sofreu outra violência sexual quando adulta, durante uma temporada no litoral do Espírito Santo. Ela buscou a polícia e denunciou, mas até hoje o processo não caminhou.
No período, a paranaense precisou ficar duas semanas na casa de uma amiga, porque não conseguia estar sozinha e só chorava.
“Existem pessoas perversas, mal intencionadas que fazem coisas ruins. Você estava lá por acaso, no meio da trajetória de um criminoso. Não é você, e reconhecer que a gente foi vítima é muito difícil. Mas mesmo que isso tenha acontecido, é possível a gente ter uma vida maravilhosa. Não é fácil, não vai te fazer esquecer o que aconteceu, mas é possível com o apoio, carinho, muitas vezes profissional”.
É preciso falar sobre
Entre 2017 e 2022, uma média de 123 crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 30% de pequenos com menos de 10 anos.
Em todas as faixas etárias, mais de 80% dos registros têm um conhecido como autor do crime.
De acordo com um balanço do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, a unidade atendeu 652 crianças e adolescentes com suspeita de terem sofrido abuso e maus-tratos em 2022.
Mais da metade era de casos de violência sexual, com bebês de apenas quatro meses de vida entre as vítimas.
De acordo com o delegado Rodrigo Rederde, do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes da Polícia Civil em Curitiba, o diálogo é parte fundamental no combate à violência.
O mesmo é avaliado por Sheylli, que também frisa que o fim do tabu do assunto é urgente para a sociedade.
“O diálogo entre pais e filhos sempre tem que existir, até mesmo com crianças mais novas. Porque, provavelmente, se esse diálogo não acontecer, ela vai buscar essa informação na internet. O que me deparo muito no Nucria são situações em que não se há essa conversa, e muitas vezes as vítimas ficam com medo da repressão dos pais por ter cometido um ato”, afirmou.
Ainda segundo Rodrigo, no caso de responsáveis separados, problemas entre adultos também não podem refletir nos filhos.
“Quando a situação entre os pais é fragilizada, não há diálogo entre eles, às vezes em separação, um está sempre contra o outro, mesmo assim eles também têm que identificar que não é porque os dois têm problemas que isso tem que refletir na criança. Ataque mútuo atinge a fragilidade da criança”, frisou.
Delegado Rodrigo Rederde, do Nucria de Curitiba
Divulgação/Polícia Civil
Em todo o Paraná, são seis unidades de delegacia especializada do Nucria — em Curitiba, Cascavel, Foz do Iguaçu, Londrina, Maringá, Paranaguá e Ponta Grossa.
Nelas, o trabalho consiste via de regra em escuta especializada com psicólogos e estrutura adaptada para crianças, como salas interativas com jogos.
Como identificar sinais
De acordo com o delegado, alguns sinais podem ser observados pelos responsáveis na criança que demonstrem um possível indicativo de abuso.
Em caso de violência sexual:
“Se estamos falando de violência sexual, provavelmente a vítima vai dar indícios de falta de atenção ou, quando muito nova, atitudes relacionadas com promiscuidade muito avançada, coisas que não poderia entender naquela idade. Às vezes também medo do toque, insônia, medo do escuro, de uma presença masculina, até do próprio pai. Além disso, a falta de rendimento escolar, falta de atenção”, explicou Rodrigo.
Em caso de abuso, exploração de imagens em redes socais:
“Nesse caso, podem ser notados falta de atenção e vício extremo na tecnologia”.
Orientações da polícia
Ainda segundo o delegado, pais e responsáveis devem ter constante atenção e monitoramento da atividade de crianças e adolescentes na internet. Em muitos casos, os crimes acontecem também a partir de chats de jogos online.
Para Rodrigo, a tecnologia não deve ser totalmente cerceada, mas sim usada com cautela diante dos riscos que apresenta.
“Crianças e adolescentes são impossíveis de afastar da tecnologia, mas responsáveis vão ter que usar como subterfúgio na educação. Criar e educar é difícil, mas não se pode delegar isso pra internet, pro jogo online. É preciso criar responsabilidade, determinar regras e monitorar”, afirmou.
Por isso, para os responsáveis, é fundamental conhecer os novos canais e as novas tecnologias — nem sempre as redes sociais conhecidas por eles são as que crianças e adolescentes de fato utilizam.
Além disso, é preciso estabelecer regras para os próprios responsáveis, como optar por perfis fechados e não publicar imagens que exponham as crianças.
“Hoje a recomendação de ter contas fechadas se aplica a todo e qualquer cidadão que não sejam figuras públicas. Porque se são registros particulares seus, têm que ficar com você”, frisou.
Para crianças e adolescentes que usam a internet, as dicas são:
Sempre desconfiar de pessoas muito curiosas, que fazem perguntas pessoais quase como um questionário (em jogos online, redes sociais);
Sempre desconfiar de pessoas que não têm informações condizentes com a realidade, sem fotos pessoais e registros que possibilitem a identificação também do ambiente;
Sempre desconfiar de pessoas que fazem muitas perguntas sobre o outro, mas não respondem com a mesma frequência sobre si.
* Com colaboração de Carol Maltaca.
VÍDEOS: Mais assistidos do g1 PR
Veja mais notícias da região em g1 Oeste e Sudoeste.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.