Arte promove cidadania entre moradores do maior albergue da América Latina

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Rodas de conversa são oportunidades para trocas e aberturas. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Sextou!”. É hora de sambar. Com sorriso no rosto e braços abertos, a palavra é pronunciada por um dos conviventes do Centro de Acolhida para Homens Nova Vida, conhecido como Oficina Boracéia, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, capital.

Moradores se aproximam da roda, além de alguns funcionários da casa, que, junto a outras unidades, fazem parte do complexo que compõe o maior albergue da América Latina, que chega a acolher, ao todo, até 2.000 homens em situação de rua. 

Luis Mendes, orientador sócio-educativo do espaço, aparece com cuíca e agogô; outro morador, com o ganzá; chega também o pandeiro, o reco-reco e o cavaquinho. O cantor pega o microfone e o violão, pés começam a dançar, mãos para o alto, sorrisos estampam os rostos, refrãos de canções antigas e atuais são cantaroladas em voz alta.



A roda de samba do Centro de Acolhida para homens existe há quatro anos e acontece de quinze em quinze dias. Foi idealizada pelo gerente da casa, Marcos da Silva Ezequiel Filho, que percebeu a importância da música no território, não apenas samba, mas todos os gêneros.

Além disso, Marcos tinha experiência prévia do efeito que a música causa entre os usuários, facilitando o acesso a eles. “Há uns sete anos, eu trabalhava de orientador na Cracolândia. Na época, com o pandeiro em mãos, houve uma facilitação nessa interação com os dependentes, uma criação de vínculo. Então eu chego no Nova Vida com esta experiência”, conta.

Marcos Ezequiel, diretor do CA Nova Vida: respeito às histórias é fundamental. FOTO: Mariana Vilela

Momento feito para eles e por eles no albergue

A festa acontece ali mesmo na unidade, iluminando os rostos dos moradores, e, principalmente, permitindo o protagonismo desses homens em situação de rua, em sua grande maioria. Como parte das atividades psicopedagógicas, são desenvolvidas algumas ações, como, por exemplo, uma roda de conversa, que é o momento de escuta sem julgamento.

Segundo a psicóloga do espaço, Alessandra de Fátima Azevedo, “eles falam muito da invisibilidade, queixam-se de que as pessoas passam na rua e não os olham nem os cumprimentam. E aqui a gente afirma isso, que eles existem e têm voz, tem seus direitos”.

Ainda segundo ela, “este Centro é para que sejam acolhidos realmente, se sintam pertencentes. Este trabalho artístico faz toda a diferença. Muitos estão tocando e cantando, alguns tocavam há muito tempo. Eles relembram músicas, lembram que tem talentos. É um momento para eles e feito por eles”, a psicóloga.

Psicóloga do Nova Vida e convivente. FOTO: Mariana Vilela

Samba do albergue transporta para outros lugares

Os conviventes não deixam dúvida sobre a importância da roda de samba para suas vidas. Dom, 33 anos, oriundo da zona norte, ex-usuário de cocaína, abandonou a família com 22 anos e mora na Oficina Boraceia há dois meses.

“Neste local, somos várias mentes com culpas, com seus pesos. E o samba nos faz, por um momento, esquecer que somos humilhados todos os dias por sermos moradores de rua. O samba é união e nos transporta para outro lugar”.

André Luis também é um entusiasta da roda de samba. Aos 43 anos, contou ter sido atropelado e está no centro para se recuperar fisica e mentalmente. “O samba é a cultura do Brasil. Ao invés de estarmos usando drogas, estamos nos divertindo. Você sabe, todo mundo que está aqui tem problemas”.

O escritor Luis Mendes, orientador sócio-educativo, participa ativamente da roda. Há dez anos trabalhando na casa, toca vários instrumentos. “Com todos estes trabalhos, dos mais variados, posso dizer que aqui foi o lugar que eu mais aprendi. Aqui tem de tudo um pouco. Você vê o cara viciado em crack, em cocaína. Há problemas internos de dinheiro, muitos com problema na família”, conta.

Ele afirma que o Nova Vida é um espaço de acolhimento muito importante, porque há um trabalho de cuidado, de orientação, em detrimento do que essas pessoas teriam na rua. “Percebo que há uma certa romantização das pessoas que vivem na rua. A rua é violenta, a rua mata, na rua se pega doença. E ainda tem as pessoas que ganham em cima dessa miséria alheia. Costumo dizer que se trata de uma subrua, que é o entorno do que acontece nas ruas”, analisa Mendes. 

Luis Mendes, orientador e escritor. FOTO: Mariana Vilela

Sarau literário, violão e roda de capoeira

Aos sábados, sempre no último final de semana do mês, acontece o Sarau Nova Vida, idealizado por Luis Mendes. Autor de Conversa de Encruzilhadas e Mulheres Insolentes e Outros Contos, sentiu a necessidade de criar um projeto para promover o intercâmbio cultural entre conviventes e com pessoas de fora do espaço.

O projeto está na terceira edição, aberto a qualquer pessoa. Participam músicos, escritores, psicólogos, estudantes e os próprios funcionários do espaço. Ele conta que na roda acontecem poemas musicados, canções, declamação de poesias e capoeira – esta, para trabalhar o corpo interligado à cultura brasileira.

“Quando pensamos numa canção para tocar no Sarau, pensamos numa música que os faça refletir, os faça observar suas realidades e seu entorno”, relata Mendes.

Segundo ele, na casa existem pessoas com muitos potenciais, inclusive escritores. Agora, junto a um coletivo de artistas, Mendes prepara para inscrever um projeto nas leis de incentivo para publicação dos livros dos conviventes. “Os moradores do Nova Vida tem grandes grandes histórias que devem e merecem ser contadas”, afirma. 

Aline, multiartista, joga capoeira com os conviventes no Sarau. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Aline Lopes de Souza, capoeirista, cantora e multi-instrumentista, tem participado do Sarau Nova Vida tocando instrumentos, cantando e jogando capoeira. “Eu sempre gostei de conhecer movimentos de cultura pela cidade. Desde que eu comecei a conhecer o movimento de saraus, vou a vários para compreender as diferenças”, conta.

E qual seria a diferença deste? “É um sarau necessário, porque ali a gente tem um público que está buscando uma nova perspectiva de vida. E é sensacional você fazer parte da nova perspectiva de um ser humano. É muito gratificante”.

Germano Gonçalves, autor de O Ex-excluído. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Outro escritor presente, Germano Gonçalves, autor de literatura marginal, aproveitou para declamar os poemas do seu livro O Ex-excluído. “O meu livro tem este nome porque quando a gente não tem oportunidade, ou está privado da liberdade, quando não têm acesso ao estudo, à saúde, ao transporte, estamos excluídos. Mas pessoas conseguem alcançar seus objetivos, deixam de ser excluídas”, explica.

Mas quais são seus motivos para participar do sarau? “Eu me envolvo porque só tive acesso à faculdade em torno dos 50 anos de idade, e hoje eu sou professor de História. Este meu livro é para mostrar que todos somos capazes, nós podemos nos tornar incluídos”, resume. 

Conversas de Encruzilhadas e Outros contos

Idealizador do Sarau Nova Viva, o orientador sócio-educativo da casa, Luis Mendes, é um trabalhador social incansável. Aprende diariamente com os conviventes e realiza atividades para eles e com eles. Suas crônicas abordam invisibilidades e a rua.

“A rua é minha grande inspiração. Mas é preciso ter olhos grandes, olhos de Jubiabá”. Ele se refere ao babalorixá de candomblé chamado Severiano Manoel de Abreu, que recebia o caboclo de Jubiabá, na cidade de Salvador, entre 1886 e 1937. Jubiabá inspirou o livro do escritor Jorge Amado e música de Martinho da Vila, intitulados como o nome do religioso.

Luis tem bagagem: foi vice-presidente de um sindicato, secretário de formação política, trabalhou no IBGE, entre outras  atividades. Também trabalhou durante anos na editora Moderna e depois ficou desempregado. 

“Nas minhas andanças para procurar emprego, comecei a observar as pessoas, as mulheres, os andarilhos, e comecei a escrever. E escrevia crônicas na internet. Nem pensava em publicar livro na época”.

A ideia de estrear formalmente na literatura veio de um conselho amigo e profissional, a partir de um texto seu chamado A entidade Lula, que repercutiu na internet, a ponto de ser discutido em universidades como USP, Unicamp e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Algumas pessoas o alertaram para publicar um livro, estabelecer autoria e receber direito autoral. Daí veio a primeira publicação.

A obra Conversas de Encruzilhadas tem chamado a atenção de universidades, inclusive a Universidade de Coimbra, em Portugal. Contém contos sobre conversas entre Exu e Jesus, uma mistura de figuras mitológicas das culturas africanas e europeias. Outro livro seu é Mulheres Insolentes e Outros Contos.

“Sei que faço parte do machismo estrutural, mas o livro também é uma forma de combater isso, de trabalhar isso em mim e quem sabe auxiliar outras pessoas”. Seu trabalho no Oficina Boraceia tem demonstrado isso.

Mariana Vilela

@marianavilelaq

www.jornalistahumanista.com.br

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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