Mãe biológica, travesti comenta os desafios da maternidade como pessoa trans, em Fortaleza

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Ellícia Maria ainda não conseguiu registrar a filha de um mês, pois esbarra em dificuldades burocráticas, já que o pai da criança, transmasculino, não tem todos os documentos retificados. Ellícia Maria e a filha de um mês, Zuri, em Fortaleza.
Arquivo pessoal
Enquanto comemorava o primeiro Dia das Mães, a produtora cultural Ellícia Maria, que é travesti, se dividia em emoções. Por um lado, a felicidade da data inédita e de segurar a filha, Zuri, nas mãos desde o último dia 12 de abril, quando a criança nasceu, em Fortaleza. Por outro lado, a dificuldade em registrar a menina que ganha nome apenas nas vozes dos pais, ambos pessoas trans, que encontram dificuldades burocráticas para oficializar o registro em cartório.
“A maternidade é algo inegociável para mim. Eu considero que é algo que ninguém vai conseguir tirar de mim; a maternidade de uma mãe travesti”, declarou Ellícia, que é casada com Lui, produtor audiovisual transmasculino.
Há um mês, o casal esbarra nos trâmites de um cartório em Fortaleza, que alega não saber como proceder em relação ao caso, considerado quase inédito, e contesta parte da documentação do pai, que gestou a criança durante nove meses.
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Lui, Ellícia e Zuri logo após o nascimento da filha do casal, em Fortaleza.
Arquivo pessoal
“O Lui possui retificado apenas o documento de identidade, documento oficial que poderia ter sido levado em consideração e validado ele enquanto o pai, mas não foi suficiente. Eles questionam como ficariam os nomes dos avós. E pontuam que não possuem respostas sobre alguns avanços de novos formatos de família”, lamentou Ellícia.
Registro
Em um despacho judicial ao qual o g1 teve acesso, onde o cartório pediu orientação à Justiça cearense, a juíza argumentou que “o ordenamento jurídico brasileiro ainda não conseguiu trazer respostas a todas indagações que norteiam o avanço dos novos arranjos familiares”.
“Tem um mês que minha filha está nos meus braços, e eu não consegui registra ela ainda, por conta de processos burocráticos do cartório e da Justiça. “Isso é um reflexo do atraso social e da violência que os corpos trans têm de enfrentar todos os dias na sociedade a fim de ter a própria cidadania validada”, lamentou a mãe da Zuri.
O Tribunal de Justiça do estado, sobre o caso, disse que a consulta para orientação formulada por cartório de registro civil à Justiça é um procedimento comum na atividade registral.
“No caso específico, o Juízo da Vara de Registros Públicos de Fortaleza, após receber a consulta, entendeu que deve ser dirigida à Corregedoria-Geral da Justiça, por reclamar resposta de interesse de alcance geral. Uma vez protocolada a consulta, a Corregedoria deverá analisar, decidir sobre o assunto, expedindo orientação às demais unidades extrajudicias sobre como proceder em casos semelhantes”, explicou o TJCE.
Ellícia e Zuri na maternidade, em Fortaleza.
Arquivo pessoal
Já a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) informou que os Cartórios de Registro Civil brasileiros são responsáveis por registrar os nascimentos de todos os cidadãos e para isso devem, por força de lei, seguir os dados constantes na Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento público nacional do Ministério da Saúde emitido pelo hospital no ato do nascimento de uma criança.
“No caso do registro de filhos de pais trans, para que esta informação conste na certidão de nascimento do recém-nascido, é necessário que tenha sido feita a retificação do nome e do gênero em cartório, caso contrário, o nome que constará na certidão será aquele informado na Declaração de Nascido Vivo (DNV)”, explicou a Arpen.
“No caso em questão, como o nome e gênero da pessoa trans não foi retificado em Cartório e, nos registros oficiais ela segue tendo as identificações originais é possível se efetuar o registro da criança no nome constante na DNV e, após alterado o nome do(s) genitor(s), ser feita a alteração do registro”, complementou a entidade.
A maternidade como legado
Ellícia entende a maternidade como um legado da própria ancestralidade.
Arquivo pessoal
Ellícia revelou que foi criada por mãe e avó, sem uma figura masculina, e que sentiu na própria ancestralidade o desejo — e o destino — de ser mãe. “Eu sinto como se a maternidade fosse um legado, que eu tive o privilégio que tantas outras mulheres e figuras femininas têm esse anseio, e eu fui contemplada e me sinto muito honrada”, declarou a produtora cultural.
Ela disse, inclusive, que percebeu a certeza da maternidade ainda durante os meses de gestação, e reverbera o sentimento desde o nascimento da filha. “Isso me orgulha muito até por estar correspondendo a todas as expectativas da maternidade; todas as cobranças e processos. Por não ser um corpo cisgênero, eu sinto que não tenho direito de errar”, avaliou Ellícia.
A maternidade serviu a ela também para reforçar os laços com a própria mãe. “Minha mãe se tornou minha rede de apoio. Ela, inclusive, vibrou muito com a chegada da Zuri, e está aqui em casa para me ajudar nas tarefas, porque eu não parei de trabalhar integralmente”, agradeceu Ellícia.
A produtora avaliou que a chegada de uma neta serviu para fortificar a relação com a mãe, que teve momentos de fragilidade por conta de religião. “Hoje a gente consegue ser maior que religião, e se encontra na espiritualidade, na afetuosidade. Isso é muito importante e tem sido fundamental nesse primeiro momento, sendo marinheira de primeira viagem”, complementou. Ellícia também agradeceu o apoio que tem recebido da sogra.
Além dos familiares, ela busca apoio e orientação com outras famílias transcentradas — lideradas por pessoas trans — no Brasil; além de contar com o apoio dos amigos do casal.
“Eu me sinto abençoada, minha família está bem, está feliz. O preconceito e comentários maldosos, a gente precisa se fechar para isso. A gente acredita no que temos construído, e não vamos negociar isso”, declarou Ellícia.
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