Mulheres constituintes e a agenda constitucional brasileira

Ao comemorar, no último dia 3 de maio, o bicentenário da primeira Assembleia Constituinte brasileira, a reflexão que trazemos é sobre as mulheres constituintes, especialmente aquelas que atuaram de forma decisiva no processo de elaboração da Constituição da República de 1988, e a agenda constitucional por elas registrada no texto constitucional vigente.

A busca pelas mulheres no constitucionalismo contemporâneo tem nos conduzido para tempos e lugares inusitados e, na maioria das vezes, muito interessantes: desde a França do século 15, com Christine de Pizan[1], até Israel de nossos dias, com Daphne Barak-Erez[2], encontramos mulheres que se aproximam entre si pela disponibilidade de ser, estar e pensar como mulheres que decidem sobre políticas públicas para suas comunidades nacionais.

A expressão constitucionalismo feminista tem sido usada tanto no Brasil[3] quanto em outros países[4] por autoras que defendem a perspectiva de gênero como um método integral que indica e dá destaque para aspectos que o Direito Constitucional Contemporâneo sombreia; exclui; e, em situações-limite, marginaliza.

Trata-se, portanto, de um olhar do constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo de lidar com os problemas jurídico-constitucionais a partir de uma visão plural, aberta e tolerante, a qual tem como vetor axiológico a igualdade de todas e todos, como respeito às diferenças.

A pergunta feita por Donna Greschner é intrigante e, ao mesmo tempo, preocupante: “as Constituições também são feitas para as mulheres?”.[5] A resposta afirmativa, automática e solene, vai ficando cada vez mais esmaecida, à medida que a comparação constitucional anuncia os dados acerca da participação das mulheres nos processos constituintes, nos parlamentos nacionais e nas supremas cortes dos diversos países.[6]

É preciso conscientizar-se de que a Constituição que nós temos depende da Constituição que constituímos, da Constituição que fazemos e da Constituição que somos.[7]  Tal assertiva interpela ativistas, advogadas, juízas e acadêmicas para unirem-se, cada vez mais, diante da imensa tarefa de jogar luzes sobre o que está em jogo: não podemos mais nos perguntar se as constituições podem ser para as mulheres, mas, antes, quando e como garantir que os textos constitucionais reconheçam e promovam os direitos das mulheres.

Daí por que, na ética da mulher, a complexidade, a pluralidade e a abertura do texto constitucional não são desafios indesejáveis, nem intransponíveis, mas, sim, elementos naturais de um corpo que só se revela, sempre provisória e parcialmente, quando concretizado em suas múltiplas dimensões. [8]

A participação das mulheres da Assembleia Constituinte de 1988 foi um recorde para a história constitucional brasileira: dos 559 parlamentares da Constituinte, 26 eram mulheres. A representação feminina na Câmara Federal ficou abaixo de 2% até 1986, de forma que a representação feminina na Constituinte, apesar de ainda muito aquém do que seria razoável, quase triplicou, chegando a 5% dos parlamentares.[9]

Não se pode deixar de registrar o papel decisivo que teve o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), criado através da Lei 7.353, de 29 de agosto de 1985, sob a presidência de Ruth Escobar, com uma composição plural de tendências, de partidos e de movimentos de mulheres. O Conselho foi criado com autonomia administrativa e financeira, vinculado ao Ministério da Justiça, com status de ministério.[10]

O Conselho Nacional de Direitos da Mulher destacou-se por atuar de forma imediata em três linhas: creches, violência e constituinte. Não se pode deixar de anotar que tal Conselho Nacional dos Direitos da Mulher também elaborou projetos para intervir nas áreas da saúde, do trabalho, da educação e da cultura, exercendo papel relevante no processo de redemocratização do país, uma vez que garantiu que grande parte das reivindicações dos movimentos de mulheres fosse incluída na Constituição de 1988.[11]

A campanha pela constituinte foi marcada por slogans como “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher“, “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte sem mulher fica pela metade“. A campanha “Mulher e Constituinte” era uma resposta à baixa representação feminina na política institucional, especialmente no Poder Legislativo nacional.[12]

O movimento nacional “Mulher e Constituinte” reuniu mulheres de diversos setores da sociedade para debater quais direitos fundamentais das mulheres a Constituição deveria contemplar. Jacqueline Pitanguy recordou que o Conselho Nacional de Direitos da Mulher fez um trabalho ininterrupto de 1985, antes da eleição para a Assembleia Constituinte, até a promulgação da Constituição, em outubro de 1988.[13]

O Conselho Nacional de Direitos da Mulher, as Constituintes e as ativistas feministas se juntaram em um movimento político que ficou conhecido como “Lobby do Batom”, cujo principal objetivo era proporcionar a participação das mulheres na elaboração da Constituição de 1988, e, assim, garantir que suas demandas fossem contempladas na nova Constituição brasileira.[14]

O “Lobby do Batom” era uma forma simbólica de as mulheres se identificarem fora da Câmara dos Deputados. Dentro da Câmara, a pauta das mulheres era representada pelas deputadas, conhecidas como Bancada Feminina. Por vinte meses, o Conselho pediu a mulheres de todo o país que enviassem propostas que gostariam de ver na Constituição. “Numa época sem internet, recebemos milhares de cartas e telegramas”, lembra a feminista. Com a ajuda de juristas, o conselho transformou essas propostas na Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes, que serviu de base para o trabalho dos constituintes.[15]

Em março de 1987, as deputadas constituintes entregaram a “Carta das Mulheres Brasileiras” ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães. Era um manifesto na qual exprimiam sua preocupação com o futuro do país e apresentavam suas propostas para a nova Constituição. Nas palavras da deputada constituinte Benedita da Silva: “O conteúdo desta Carta representa o esforço comum de nós mulheres, donas de casa, filhas, companheiras de luta do dia a dia de cada um.[16]

A Carta se inicia com uma citação de Abigail Adams, que ainda no século 19 afirmara: “Se não for dada a devida atenção às mulheres, estamos decididas a fomentar uma rebelião e não nos sentiremos obrigadas a cumprir leis para as quais não tivemos nem voz nem representação”.[17]

Esta Carta das Mulheres, no processo constituinte de 1987-88, foi um dos documentos mais importantes e abrangentes produzido pelas mulheres, estando dividido em duas partes, as quais demonstram que as mulheres tinham uma pauta muito mais ampla do que a defesa dos direitos das mulheres em si, uma vez que cuidava de justiça social, da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), defendia o ensino público e gratuito em todos os níveis, também a reforma agrária, dentre outras propostas.

O objetivo principal do documento era chamar a atenção dos constituintes para as demandas em relação aos direitos das mulheres no que se referia à família, trabalho, saúde, educação e cultura, violência e questões nacionais e internacionais.[18] Durante todo o período de trabalho em torno da Constituinte, o movimento feminista foi o que mais se destacou por trabalhar diretamente no trato com os parlamentares, de modo a convencê-los da necessidade de serem atendidas as demandas formuladas por mulheres.

Essa atuação conseguiu aprovar em torno de 88% das reivindicações, constituindo-se o setor organizado da sociedade civil que mais vitórias conquistou nesse processo constituinte.[19]

A agenda constitucional brasileira está escrita de forma clara e indelével nos muitos e diversos artigos da Constituição da República de 1988, cabendo a nós, profissionais e estudiosas do Direito, continuarmos o exitoso trabalho de nossas fundadoras, mulheres que merecem não apenas o nosso reconhecimento, mas a nossa força de trabalho em prol de suas lutas. Juntas somos, realmente, mais fortes.


[1] PIZAN, Christine. La Cités des Dames. Texte traduit et presente par Therese Moreau et Eric Hicks, 4ª ed. Paris: Stock, 2000. Vide também: CALADO, Luciana Eleonoura de Freitas. A cidade das damas: a construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan. Tese (Doutorado). Recife, UFPE – 2006.

[2] BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.

[3] Por todas vide: SILVA, Cristina Telles de Araújo. Por um constitucionalismo feminista: reflexões sobre o direito à igualdade de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

[4] Consulte-se o trabalho de MONTAÑEZ, Nilda Garay. Constitucionalismo feminista: evolución de los derechos fundamentales en el constitucionalismo oficial, in Estudios en homenaje a la professora Julia Sevilia Merino. Disponível em: http://feministasconstitucional.org/wp-content/uploads/2016/07/00_Igualdad_y_democracia_llibre_homenatge_JS-1.pdf Acessado em 20.12.2018. Aqui também vale compulsar: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.

[5] GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986, p. 20.

[6] Não há estudos comparativos com dados conclusivos, mas, por uma amostragem, vale a leitura de: BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN, Ruth. The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010.

[7] PITKIN, Hanna Fenichel. The idea of Constitution apud BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN, Ruth. Toward a Feminist Constitutional Agenda, in The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010. p. 2

[8] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Substantivo feminino, Constituição significa mulheres no poder, in Revista Eletrônica Consultor Jurídico, junho de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/observatorio-constitucional-substantivo-feminino-constituicao-significa-mulheres-poder Acessado em 10.09.2019.

[9] SCHLOTTFELDT, Shana; COSTA, Alexandre Araújo. Em Busca Do Poder: A Evolução da Participação Política da Mulher na Câmara dos Deputados Brasileira, E-legis, Brasília, n. 21, p. 100-126, set./dez. 2016. Parte desse avanço é atribuído ao movimento realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, visto como a primeira experiência de institucionalização das reivindicações dos movimentos feministas no Brasil.

[10] PONTES, Denyse. DAMASCENO, Patrícia. As políticas públicas para mulheres no brasil: avanços, conquistas e desafios contemporâneos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress, Florianópolis, 2017.

[11] PONTES, Denyse. DAMASCENO, Patrícia. As políticas públicas para mulheres no brasil: avanços, conquistas e desafios contemporâneos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress, Florianópolis, 2017.

[12] MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. 2018. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2019.

[13] Apud MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. 2018. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2019.

[14] MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. 2018. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2019.

[15] Lobby do baton: marco histórico no combate às discriminações. Disponível em:  https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco-historico-no-combate-a-discriminacoes Acessado em 08.09.2019.

[16] MODELLI, Laís. Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres. 2018. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2019.

[17] Carta de Abgail Adams a seu esposo, John Adams, em 31.03.1776, durante o processo constituinte que conduziu à aprovação da Constituição norte-americana, apud MARINELA, Fernanda. Vademécum: direitos das mulheres. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015.

[18] MIRANDA, Cynthia Mara . Os movimentos feministas e a construção de espaços institucionais para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/nucleomulher/arquivos/os%20movimentos%20feminismtas_cyntia.pdf> Acesso em: 12 de setembro de 2019

[19]  MIRANDA, Cynthia Mara . Os movimentos feministas e a construção de espaços institucionais para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/nucleomulher/arquivos/os%20movimentos%20feminismtas_cyntia.pdf> Acesso em: 12 de setembro de 2019.

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