Parteiras exaltam ancestralidade e buscam reconhecimento

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Ela era uma criança de nove anos e lágrimas nos olhos quando aparou um recém-nascido em suas mãos negras e pequenas pela primeira vez. Era uma noite chuvosa quando sua mãe entrou em trabalho de parto. O pai saiu para buscar a parteira, dona Bina, mas não chegaram a tempo de ver a criança nascer.
Hoje, Floriceia Carvalho das Neves, ou simplesmente Flor, tem 65 anos, 47 afilhados e centenas de crianças que ajudou a trazer ao mundo na comunidade quilombola da Ilha de Maré, região insular de Salvador sem ligação rodoviária com continente.
Parteira de profissão, Flor faz parte de uma legião de trabalhadoras que, mesmo encaradas como líderes em suas comunidades, batalham por mais visibilidade da porta para fora. Para isso, atuam para difundir o parto normal e incentivar mulheres grávidas a terem seus bebês seguindo as tradições ancestrais.
As parteiras tradicionais deram mais um passo nesta direção na última sexta-feira (5), quando inaugurada a Casa da Parteira de Taperoá, cidade de 21 mil habitantes do Baixo-Sul da Bahia.
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Além de servir às parteiras da região, a casa será sede da Rede Nacional de Parteiras e Povos Originários e da Rede Internacional Escola de Saberes, Cultura e Tradição Ancestral. As entidades têm como foco a capacitação e a troca de experiências entre as parteiras tradicionais, além do atendimento a mulheres grávidas antes, durante e depois do parto.
“A mulher grávida tem que se empoderar para que, na hora do parto, quem conduza esse trabalho seja ela. Nós ajudamos, orientamos, mas quem faz o parto é a mulher”, diz Suely dos Santos Carvalho, 72, fundadora das redes de parteiras e que já ajudou a trazer ao mundo mais de 5.000 crianças.
Militante do movimento sanitarista que resultou na criação do SUS (Sistema Único de Saúde), Suely é bisneta, neta, filha e mãe de parteiras tradicionais. Em 1991, ela fundou em Olinda (PE) o Cais do Parto, ONG que se tornou referência na formação de parteiras e no apoio a mulheres grávidas.
O embrião da entidade foi a criação, em 1989, da “roda de casais grávidos”, espaço onde pais e mães recebem aconselhamento e se prepararam para o momento da chegada do bebê. A experiência se espalhou por outras redes de parteiras e segue viva até os dias de hoje.
A Casa da Parteira de Taperoá dará prosseguimento a este trabalho de incentivo ao parto normal, indo na contramão à tendência de avanço dos partos cesáreos entre as mulheres brasileiras.
O Brasil possui a segunda maior taxa de cesáreas no mundo, só perdendo para a República Dominicana, conforme pesquisa publicada em 2018 pela revista Lancet. Dos partos feitos no SUS (Sistema Único de Saúde), 40% ocorrem por meio de cirurgias. Na rede privada, o índice chega a 84%.
O procedimento cirúrgico, contudo, só deveria ser realizado em caso de necessidade, segundo diretriz da OMS (Organização Mundial da Saúde).
No Brasil, além de se tornar mais comum, as cesáreas passaram a ser incentivadas. Em São Paulo, por exemplo, o governo sancionou em 2019 um projeto de lei da então deputada Janaína Paschoal que garante à mulher a opção pela cesárea no SUS, mesmo sem indicação clínica. A decisão ocorreu a despeito de parecer técnico contrário da Defensoria Pública do Estado.
É neste cenário que muitas mulheres têm caminhado na direção contrária, buscando uma reconexão com as culturas ancestrais. Foi o caso da médica Camila Goes, 38, que que há oito anos vive em Taperoá.
Mãe de três filhos, Camila teve o seu mais velho há dez anos em um parto cesáreo, mas optou por dar à luz aos dois mais novos com o apoio de parteiras tradicionais. A experiência foi um impulso para que ela mergulhasse nesse universo e também se tornasse uma parteira, seguindo o legado de sua bisavó.
“Comecei a formação de parteira e, no meio, começaram a aparecer mulheres grávidas. Logo nasceu o primeiro bebê em minha casa, e depois viram vários outros”, lembra Camila, que comanda as rodas de casais grávidos em cidades e assentamentos da região.
Ela destaca que o parto tradicional segue uma abordagem que vai além do corpo, tratando também do lado emocional e espiritual das mulheres grávidas. Daí a sua diferença em relação aos movimentos mais recentes pelo parto humanizado, majoritariamente formado por profissionais de saúde.
“A parteira tradicional sempre existiu, ela nasce com a humanidade. É um conhecimento milenar e que é muito parecido em diferentes culturas. E quando a medicina surgiu, ela não aprendeu com as parteiras porque era uma medicina branca e de homens”, afirma.
O trabalho das parteiras tradicionais vai muito além do momento do parto. Em áreas rurais ou isoladas, elas se tornam uma espécie de líder das comunidades, atuando no acolhimento, aconselhamento e até mediação de conflitos familiares. São conhecidas como comadres de pais e mães e como madrinhas dos filhos nascidos pelas suas mãos.
Também há uma conexão do parto com a religiosidade, a despeito de a rede das parteiras não seguir nenhuma religião justamente para acolher mulheres grávidas de diferentes credos. Em geral, os trabalhos podem incluir banhos de ervas, benzimentos, patuás, a depender da cultura da comunidade.
Não se sabe ao certo quantos homens e mulheres trabalham auxiliando partos de forma tradicional no Brasil. O último levantamento foi realizado em 1993 e contabilizou cerca de 60 mil parteiras e parteiros, sendo a maioria em comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
Depois de 30 anos, a tendência é que este número seja menor, já que grande parte das parteiras identificadas na época eram mulheres idosas e, nas últimas décadas, se tornou menos comum que o ofício de parteira passe de mãe para filha nas comunidades tradicionais.
Por outro lado, as parteiras estão mais organizadas e trabalham por uma melhor interlocução com os governos federal, estaduais e municipais.
Em 2011, o governo federal incluiu o trabalho das parteiras tradicionais como elemento de saúde comunitária o lançamento da Rede Cegonha. O programa foi retomado neste ano no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que também revogou portarias vistas como incentivo a cesarianas.
A capacitação está entre as principais demandas das profissionais, que mesmo com o aprendizado de gerações buscam por mais conhecimento para auxiliar os partos normais.
“Temos parteiras que não sabem anatomia humana. São mulheres que passam 20, 30 anos tocando o corpo de mulheres e não sabem o que tem lá dentro. É preciso ensinar usando a linguagem delas”, explica Suely Carvalho, que comanda cursos com parteiras tradicionais.
Outra demanda é apoio logístico para os partos que demandem atendimento médico, sobretudo em áreas isoladas. Também há um projeto para realização de um novo censo das parteiras.
A quilombola Floriceia Carvalho, que já chegou a fazer parto dentro de um barco na Baía de Todos-os-Santos, hoje ajuda a formar novas gerações de parteiras. E celebra o ofício milenar: “Confio em Deus, em Nossa Senhora do Parto e recebo o maior carinho a criança. É muito lindo ver uma criança nascer.”
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