Mãos que criam: Como famílias de artesãos do Acre sobrevivem usando técnicas milenares com cerâmica


Sete famílias de Rio Branco tiram o sustento da fabricação de peças de cerâmica em espaço cedido pelo governo do Acre. Criada na década de 60, Funbesa oferecia cursos para centenas de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Carlos Afonso chegou à Funbesa aos 11 anos e atualmente é artesão-mestre da oficina
Mãos habilidosas moldam o barro e com movimentos certeiros dão forma e vida a ele. A precisão é resultado de uma vida inteira dedicada a um ofício com aproximadamente dez mil anos de história.
Carlos Afonso Januário de Souza, 53 anos, é atualmente o artesão-mestre da Casa do Ceramista Funbesa, em Rio Branco. Quando ele chegou ao local, porém, era apenas uma criança.
“Eu vim para cá com 11 anos de idade. Antigamente aqui tinha de tudo, colônia de férias, área de lazer, tinha a parte de cursos e quando eu completei 12 anos comecei a fazer o curso de cerâmica e nunca mais parei”, conta.
Carlos Afonso Januário de Souza chegou à Funbesa aos 11 anos e hoje é o artesão-mestre do local
Yuri Marcel/g1
Fundação de Bem Estar Social
Instalada em 1968, no bairro Estação Experimental, uma região histórica da capital acreana que renderia muitos contos à parte, a Fundação do Bem Estar Social (Funbesa) recebia originalmente menores infratores, internos da Fundação para o Bem Estar do Menor (Febem) em projetos de reabilitação e aprendizagem profissional.
FOTOS: Funbesa oferecia oficinas de formação profissional para pessoas em situação de vulnerabilidade
O local era gerido pela Legião Brasileira de Assistência (LBA) um órgão assistencial ligado ao Ministério do Trabalho e Previdência Social, entre 1969 e 1977, e depois ao Ministério da Previdência Social, de 77 até 1990.
Com o passar dos anos, a Funbesa ampliou sua base de assistência social e passou a atender também famílias em situação de vulnerabilidade social em projetos que incluíam oficinas de artesanato, corte e costura, panificação, cabeleireiro, esportes e outros.
O ícone botafoguense e da Seleção Brasileira, Mané Garrincha, foi um dos atletas que chegaram a vir ao Acre para jogar na Funbesa em um evento promovido pela LBA.
E foi nesse contexto que Souza chegou à Funbesa em 1981. “Esse local acolhia muitas pessoas carentes, como era o caso da minha mãe, que trouxe a gente pra cá. E a gente foi ficando”, lembra.
O jogador Garrincha chegou a participar de evento na Funbesa
Foto: Reprodução/Facebook
Com o passar dos anos, os antigos instrutores foram se aposentando e o governo acabou contratando os antigos alunos para assumir os cursos.
Apesar de ainda existir oficialmente até hoje. Desde meados da década de 90, a Funbesa passou a ter suas funções incorporadas por outras secretarias, como a de Assistência Social. No começo dos anos 2000, o coletivo de artesãos passou a atuar de forma independente. A procura pelos cursos da instituição, todavia, continuava.
“Tinha uma demanda grande de pessoas carentes, de bairros adjacentes e outros, procurando os cursos. Foi quando os artesãos tiveram a ideia de ajudar a viabilizar novos cursos.”, conta Ana Cleide da Silva Paiva que é responsável por administrar o setor de artesanato da Funbesa há mais de 20 anos.
Ana Cleide trabalha com os artesãos da Funbesa há mais de 20 anos
Yuri Marcel/g1
O governo do Estado logo concordou com a ideia e os cursos foram retomados.
“Eu fui até acusada, na época, de separar casamentos. Porque tinham muitas mulheres que apanhavam dos maridos, passavam por mil e uma situações e chegavam aqui contando as histórias e eu dizia pra elas fazerem os cursos e ganharem o próprio dinheiro”, lembra.
Mulheres em situação de vulnerabilidade eram capacitadas pela Funbesa
Acervo Funbesa
De estudante a mestre
Embora eles não tenham certeza dos números, acreditam que mais de uma centena de pessoas tenham sido formadas nos cursos da Funbesa. Incluindo aí artesãos, que assim como os vasos de cerâmica, Afonso também ajudou a criar.
“Aqui em Rio Branco e nos municípios todos do Acre quem dava curso de cerâmica era eu”, afirma orgulhoso.
Parcerias foram feitas com prefeituras de Cruzeiro do Sul, Brasiléia, Sena Madureira e Feijó e galpões chegaram a ser construídos nessas cidades para formar novos artesãos. Parte desses projetos, entretanto, acabaram não indo adiante para tristeza do artesão.
“Eu não quero quero prender isso pra mim. Eu quero ensinar, quem quiser eu ensino”, disse.
Carlos Gabriel, filho do artesão-mestre, quer seguir os passos do pai
Yuri Marcel/g1
Legado em casa
O legado do mestre, porém, está salvo dentro de casa. O filho dele, Carlos Gabriel, de 23 anos, que assim como o pai começou a frequentar a oficina de cerâmica desde a infância, agora trabalha junto com ele.
“Eu venho pra cá desde os oito anos. No começo era só para brincar, fazer bolas, bolinhas de cerâmica. Aí fui continuando, pegando gosto”, conta.
Ele sabe, no entanto, que tem um longo caminho pela frente para alcançar o nível de precisão do pai.
“Eu ainda tô na fase de desenvolvimento. É meio difícil, porque tem que ter a prática na mão. Tem que ter a mão leve. O cara se sente realizado quando uma peça dá certo, mas tem que ir praticando até uma hora conseguir”, diz ele, que espera um dia virar artesão-mestre como Souza.
Artesãos fabricam cerâmica na Funbesa há mais de 40 anos
Yuri Marcel/g1
Produção
Apesar dos avanços tecnológicos, o processo de produção de objetos de cerâmica não mudou muito desde o período Neolítico. Assim como faziam os artesão da Mesopotâmia, onde estão os registros arqueológicos mais antigos do uso do material, os artesãos da atualidade ainda dependem da argila, do fogo e da própria habilidade e criatividade.
O material que os artesãos usam na Funbesa é coletado na região do Barro Alto, também em Rio Branco. Depois de separado e amassado, a argila precisa descansar por ao menos uma semana e o processo todo até o produto ser finalizado leva ao menos duas semanas.
“Mas tem artesão que faz até 100 peças por dia, dependendo do tamanho delas”, explica.
Mas a produção também tem desafios. Durante a seca histórica de 2024, os artesãos perderam parte da produção, já que o tempo seco prejudicava a secagem da peças. “Eles tinham que jogar água no chão da oficina para manter a umidade. Às vezes, de 50 peças se salvavam 20, porque secavam de forma errada e se quebravam”, explica Ana Cleide.
Artesãos possuem uma loja para vender seus produtos no bairro Estação Experimental
Yuri Marcel/g1
Na oficina são fabricados vasos, utensílios domésticos, pratos e até mesmo lembranças para festas de aniversário.
Ana Cleide ressalta ainda que toda a produção é sustentável, já que toda a madeira para a fornalha é reciclada. Além disso, o forno, construído de forma especial, libera poucos gases poluentes na atmosfera. “Um fiscal do Instituto de Meio Ambiente já veio aqui checar e emitiu um laudo comprovando que não há poluição”, salientou.
Artesãos compram madeira descartada para alimentar fornalha
Yuri Marcel/g1
Artesanato pelo mundo: Canadá, China e até Japão
E as peças que podem custar de R$ 8 a até mais de R$ 100, dependendo da complexidade, ganharam o mundo.
Como o espaço é administrado pelo governo do Acre tem espaço cativo nos eventos produzidos por ele. Além disso, o material e os expositores são sempre incentivados a participar de feiras de artesanato Brasil afora.
“Meu serviço já me levou em muitos cantos. Já tive em Vitória, em Brasília e em um bocado de locais através da cerâmica”, enfatiza.
Construídas de forma especial, chaminés da oficina são menos poluentes
Yuri Marcel/g1
As peças produzidas por Carlos Afonso já atravessaram até o mesmo continentes. “Tem material meu que está no Japão. Eu acho legal, mas não me sobe muito a cabeça isso não” conta ele.
Todo o lucro obtido pela venda das peças produzidas é dividido entre os artesãos. Segundo o mestre, em média cada um deles consegue receber até um salário mínimo e meio.
“A gente não pode deixar de dar essa ênfase para o Estado porque estamos aqui nesse espaço. Os artesãos têm total sustentabilidade para sobreviver desse material e 100% das vendas é repassado para eles”, enfatiza.
Atualmente sete artesãos trabalham no local de forma fixa e sustentam as famílias com o ofício. Há ainda outros que atuam no local de forma esporádica.
E o artesão-mestre é enfático quando questionado se gostaria de ter outra carreira. “Eu gosto mesmo. Não tem outra profissão, eu escolhi essa”, finalizou.
Sete famílias vivem da renda do artesanato produzido na Funbesa atualmente
Yuri Marcel/g1
Adicionar aos favoritos o Link permanente.