Dia do Orgulho LGBTQIA+: as histórias de pessoas trans que lutam pelo direito de se cuidar, ter filhos e construir uma família

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Mulheres e homens trans falam sobre o direito de constituir família e assegurar o respeito à própria identidade nos serviços de saúde. Imagem mostra família formada por Yuna Vitória, Théo Brandon e Dionísio – filho do casal.
Yuna Vitória/Acervo Pessoal
Mais do que sobrevivência, respeito. No país onde a expectativa de vida da população trans é de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), homens e mulheres transgêneros ainda lutam para ter acesso aos direitos básicos de qualquer cidadão.
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Entre eles, os direitos sexuais e reprodutivos – um tabu em meio a uma sociedade ainda muito conservadora, que impõe diversas barreiras sociais a uma parte da população invisibilizada. Nesta quarta-feira (28), Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, o g1 traz as histórias reais de pessoas trans que enfrentam a realização e os desafios de viverem plenamente suas identidades de gênero.
‘Sempre tive o desejo de ser mãe’
Advogada trans Yuna Vitória, de 30 anos, com o filho Dionísio, de 4
Yuna Vitória/Acervo Pessoal
Yuna Vitória e Théo Brandon planejaram uma família. Para os olhos de muitos, seria uma tradicional família brasileira – formada por um pai, uma mãe e um filho fruto de muito amor. Com apenas 4 anos, Dionísio ainda não tem ideia do quão revolucionário é o núcleo familiar do qual faz parte.
Yuna tem 30 anos, é advogada, servidora pública da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Théo Brandon, de 27 anos, está terminando o curso de medicina e pretende se especializar em cirurgia plástica. Se eles formam uma família, têm um filho e são bem-sucedidos em suas profissões, o que de extraordinário faz de Yuna e Théo um questionamento para a sociedade e tema de uma reportagem?
Apenas o fato de que Yuna é uma mulher trans e Théo, um homem trans, além de terem um filho que era um projeto de vida, mas que precisava ser vivido dentro das identidades de gênero de cada um.
“Sempre tive esse desejo [de ser mãe]. Mesmo que de uma maneira infantil, construí esse local. Minha mãe sempre me criou quase como uma mãe solo. Sempre esteve comigo, me ensinou tudo. Tenho uma gratidão muito profunda e admiração pelos cuidados das mães e queria vivenciar esse lugar. Ao mesmo tempo, sempre teve a questão de gênero na minha vida. Nunca me imaginei enquanto homem, enquanto pai. Com o passar do tempo, vi que era possível nomear a minha existência e que eu poderia viver minha identidade de gênero”, conta a advogada.
Depois de estudar e garantir a independência financeira, Yuna começou a pensar na possibilidade da maternidade por meio da adoção ou por barriga solidária. Deparou-se com o preconceito e com as dificuldades comumente enfrentadas pela população LGBTQIA+ – ainda negligenciada nos processos de adoção – e deixou a ideia de lado até conhecer Théo Brandon, homem trans com quem namorou, noivou e casou ao longo de seis anos. Foi quando descobriram em comum o desejo de exercerem a parentalidade.
“A terapia hormonal é inimiga da fertilidade das pessoas trans. Com o passar do tempo, a fertilidade fica totalmente comprometida e isso não é abordado pelos especialistas no processo de transição. Precisamos interromper os tratamentos hormonais para restabelecer a fertilidade. E quando conseguimos, que achamos que poderíamos curtir a gestação de Théo, aí é que começou a luta”, recorda Yuna.
Ela conta que, mesmo interrompendo a terapia hormonal, por vários meses lidando com as mudanças no corpo, com as questões de voltar a ter uma aparência diferente da sua identidade de gênero e com o planejamento de longo prazo que foi necessário para conseguir gestar seu filho, o casal se deparou com o preconceito do sistema de saúde – que só conseguia pensar que eles estavam gestando por acaso, fruto de um “acidente”.
“Não passava pela cabeça das pessoas, dos profissionais de saúde, que foi um planejamento. Assim como não aceitavam que eu fosse a mãe e que nosso filho estivesse sendo gestado pelo pai. Tivemos nossas identidades de gênero o tempo todo desrespeitadas, a ponto de Théo ter a ultrassonografia transvaginal negada porque não reconheciam que ele é um homem trans”, contou Yuna Vitória.
Nos nove meses de gestação, Théo enfrentou piadas, não pôde acessar qualquer benefício prioritário às pessoas grávidas, incluindo o acesso a ônibus sem passar pela catraca, até encarar o que, para o casal, foi o limite: a impossibilidade de registrar o filho com as suas identidades de gênero.
No SUS e na Declaração de Nascidos Vivos (DNV), Yuna Vitória seria o pai e Théo Brandon, a mãe de Dionísio – o que para eles era inaceitável.
“A gente só conseguiu ter nossa identidade de gênero respeitada depois de muitas etapas, no serviço privado; não no SUS. Porque conseguimos embasar nossa demanda do ponto de vista jurídico e médico, por termos uma rede de apoio que ficou ao nosso lado e por termos mobilizado o Ministério Público. Quando conseguimos a garantia de que, nos documentos, eu seria a mãe de Dionísio e Théo seria o pai, a gestação já estava no final e estávamos muito cansados”, explicou Yuna.
Se tivessem baixado a cabeça para os preconceitos e a resistência amparada em dogmas sociais, o casal poderia não ter conseguido registrar Dionísio como filho. E foi a partir da luta deles que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o SUS desvinculasse o sexo biológico dos pais da situação de gestação e parto na Declaração de Nascidos Vivos, reconhecendo parentalidade pelo gênero.
O caso de Yuna Vitória e Théo foi, inclusive, citado na decisão do ministro Gilmar Mendes, que reconheceu o direito constitucional das pessoas trans.
Conseguir registrar o filho foi uma das muitas conquistas dessa família. Dionísio nasceu saudável, numa família que o ama e essa história é também marcante pelas possibilidades de amor e de amar que existem. Théo amamentou Dionísio nos primeiros meses e, depois de um estímulo hormonal, Yuna também pode amamentar seu filho – aumentando ainda mais o vínculo entre eles.
“A gente iniciou uma nova luta na sociedade, de fazer com que as pessoas nos compreendam como mãe e pai de Dionísio. Ter amamentado meu filho ajudou a solidificar ainda mais esse vínculo de mãe não gestante. Foi uma das maiores alegrias da minha vida”, completou Yuna Vitória.
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Gravidez durante a transição
O universitário Kayo Vítor da Silva estava no início do processo de redesignação sexual quando descobriu, com surpresa, que estava grávido de Arthur, hoje com 6 meses.
O jovem de 18 anos, que mora no bairro do Curado I, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, conta que, desde o início da gestação, precisou interromper a transição hormonal para evitar riscos à saúde do bebê e, depois, para garantir a produção de leite na amamentação.
“Fiquei muito mal porque já estava tudo certo para tomar os hormônios. Tive bastante disforia [estranhamento com o próprio corpo] em relação ao meu corpo. Eu sou muito magrinho e, durante a gravidez, fiquei bem mais gordo. A galera me confundia, ficava me olhando torto”, diz Kayo.
Uma das maiores dificuldades que o jovem diz enfrentar até hoje é o desrespeito à sua identidade de gênero, apesar de ter retificado o próprio nome há quatro anos.
Tanto no posto de saúde onde fez o pré-natal, quanto no Hospital Barão de Lucena, na Zona Oeste do Recife, onde o parto foi realizado, houve quem insistiu em tratá-lo no feminino.
“Não cheguei a discutir, explodir. Porque, na minha cabeça, só ia piorar a situação. Muitas vezes, deixava rolar. Às vezes minha mãe corrigia. Mas eu procurava ficar na minha. Se alguém me tratar no feminino, não vou corrigir porque, para mim, aquilo serve como um bloqueio”, diz Kayo.
Embora conte com o apoio da mãe, ele também enfrenta preconceito da própria família.
“Tem gente que não aceita, tipo meus tios, minhas tias, primos, irmãos. Todos me tratam pelo feminino ainda; por mais que eu já tenha mostrado minha identidade. Isso é bem difícil de lidar. E aí me relacionei com o pai do menino e meio que, para ele, eu era uma pessoa lésbica. A gente chegou a terminar por conta disso. Ele tentou conversar comigo, a gente fez relações [sexuais] e veio Arthur. E ele fica falando que tem muita gente que se arrepende quando faz a transição, toma os hormônios. E isso me deixa muito mal porque é uma coisa que eu quero”, comentou o jovem.
Apesar de todos esses desgastes, a paternidade, para Kayo, é uma vivência “incrível”.
“Ele [Arthur] é a coisa mais linda. Não me sinto mais sozinho. Eu amo ele, é tudo que eu tenho. É muito massa ser pai. Vou ensinar o que é certo, dizer que ele tem dois pais e eu sou o pai que o gerou. Mas sempre vai ter aquele tipo de gente que vai chegar e dizer que sou mãe. Mas, independente de tudo, eu também sou pai”, afirma.
Procuradas pelo g1, a prefeitura de Jaboatão, responsável pela gestão do Posto do Curado I, e a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), que administra o Hospital Barão de Lucena, se pronunciaram sobre o caso de Kayo e o atendimento a pacientes trans (veja as respostas abaixo).
‘Fiz de tudo para ter minha independência’
Homem trans bissexual, Érre Dantas diz que hoje não pensa em ser pai
Érre Dantas/Acervo Pessoal
Desde os 13 anos, o educador social Érre Dantas, mesmo sem saber o que era ser transgênero, já entendia que era “diferente”. Hoje com 26, ele diz que a noção de que era um homem trans veio, de fato, aos 17, depois de começar a frequentar ambientes LGBTQIA+ e conversar sobre o assunto.
Érre conseguiu fazer a cirurgia para retirar as mamas no início de 2023 e diz que, durante muito tempo, evitou o contato com a família por conta da rejeição à sua identidade de gênero.
“Hoje em dia, minha mãe me aceita, mas não me respeita. Ainda me chama pelo gênero feminino. Desde que eu comecei a transição e depois de toda a rejeição, fiz de tudo para não ficar em casa. Fiz de tudo para ter minha independência”, diz ele, que há pouco tempo decidiu se reaproximar, numa tentativa de interromper o ciclo de brigas e se reconectar com o núcleo familiar.
“Passei 10 anos brigando com eles por causa dessas mudanças todas na minha vida. Vejo eles ficando mais velhos e nesse momento decidi que não me importo tanto de ser desrespeitado, para ficar um pouco mais perto deles”, completa.
A aceitação pessoal enquanto pessoa trans e as transformações feitas em sua vida nos últimos anos ainda não se refletiram na vida de Érre numa rotina de cuidados com a própria saúde. Não como deveria ser.
Se, por um lado, ele conseguiu avançar na sua transição e realizou a cirurgia para retirar as mamas; por outro, ainda não teve coragem de enfrentar os olhares da sala de espera para uma consulta ginecológica e fazer os exames necessários para os homens trans em ambientes onde apenas mulheres são atendidas.
“Antes de me entender como uma pessoa trans, não fui muitas vezes ao ginecologista. Acho que só umas duas vezes antes dos 16 anos. No início, como ainda não estava me apresentando como homem, tinha os olhares por acharem que eu era uma mulher lésbica. Mas agora, a gente vê os olhares das pessoas e eu tenho receio do preconceito”, explica.
Acompanhado por endocrinologista no Espaço de Atendimento para Homens Trans do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), da Universidade de Pernambuco (UPE), Érre faz tratamento hormonal e exames relacionados à sua transição de gênero.
Já para o atendimento ginecológico, a unidade de saúde não tem um espaço específico para a população trans.
“[O atendimento] é junto com as mulheres e, se eu já tinha os olhares das pessoas antes, agora eu tenho mais medo. Já marquei várias vezes a consulta, mas não vou, por medo”, conta.
Ele diz que, desde que conseguiu o emprego atual – com carteira assinada e benefícios – pensa em tentar uma consulta no sistema privado de saúde. “Me sinto observado o tempo todo. Talvez seja menos invasivo”, supõe.
No processo de transição há 7 anos e ainda passando por muitas mudanças, Érre explica que ainda não pensou sobre ter uma família, filhos ou se tem vontade de viver uma gestação. É um assunto que ainda não se colocou, ou foi colocado no seu cotidiano.
“Tenho dúvidas, não tenho pensado sobre isso neste momento. Sou um homem trans bissexual. Me protejo com camisinha e, como eu tomo hormônio, o risco de engravidar é bem pequeno”, explica.
No seu dia a dia, atualmente, têm mais impacto os preconceitos de uma sociedade conservadora. Entre as principais questões colocadas nos ambientes sociais, está o uso de banheiros fora de casa.
“Alguns ambientes não são inclusivos. Antes da transição, usar o banheiro era algo horrível. Eu não ia ao banheiro fora de casa, ficava prendendo. Até hoje, dependendo do lugar, os banheiros são mictórios. Como eu vou fazer xixi num mictório? Se estou numa festa, com uma amiga, ela me leva no banheiro feminino e a gente explica que sou um homem trans e preciso usar uma privada. Mas nem todo mundo entende. São muitos desafios”, contou.
‘Precisamos avançar no entendimento de gênero’, diz secretária nacional
Symmy Larrat, secretária nacional dos Direitos da População LGTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos
Agência Brasil
Em entrevista ao g1, a secretária nacional dos Direitos da População LGTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos, Symmy Larrat, disse que está em diálogo com o Ministério da Saúde para a adoção de duas medidas que considera essenciais para a garantia dos direitos das pessoas trans: a retomada da Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT, suspensa desde 2017, e a atualização do processo transexualizador.
“No SUS, ainda há uma dificuldade, por exemplo, para os homens trans serem atendidos na ginecologia, que é um atendimento das mulheres. E como é que um homem vai fazer esse serviço? Então, a gente precisa ‘degenerificar’ os serviços do SUS para um serviço abrangente para a população, e não com essas especificidades de ‘homem’ e ‘mulher’, pensando em ‘pessoas’”, afirma.
Ainda de acordo com Symmy Larrat, o uso do nome social e o respeito à identidade de gênero são direitos garantidos nos serviços de saúde. Por isso, quem sofrer esse tipo de violência deve fazer uma denúncia aos órgãos competentes.
“Isso pode ser feito, inclusive, numa delegacia, por conta da decisão do STF. Então, o que a gente tem que fazer caso isso ocorra é fazer a denúncia. Na nossa parte, nós temos ações de monitoramento no caso da violência e da segurança pública”, informa.
Symmy Larrat avalia ainda que existe “uma perseguição” ao debate sobre as identidades de gênero, “estimulada pelo discurso de ódio” que persiste na sociedade. “São diversas ações que temos que fazer nesse campo, mas que superem essa prática cotidiana”, declara.
O que dizem o governo e a prefeitura de Jaboatão
Procurada pelo g1 para comentar a situação vivenciada por Kayo, a prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, responsável pela gestão do Posto de Saúde do Curado I, disse que possui, desde 2019, um Núcleo de Atenção à População LGBTQIA+, que tem como um dos objetivos o combate à LGTBfobia institucional.
A gestão municipal disse que em 2020 implementou o Ambulatório Municipal de Atenção Integral à Saúde da População LGBTQIA+.
A prefeitura afirmou ainda que:
Compreende os direitos sexuais e reprodutivos da população trans como “direito humano, portanto, inegociável”;
“Todo o atendimento pré-natal e ao parto de homens trans e pessoas não-bináries deve ser realizado na perspectiva da garantia do direito à saúde e respeitando as singularidades de cada pessoa, conforme preconiza o Sistema Único de Saúde, e a Política Nacional e Estadual de Atenção Integral à Saúde da População LGBTQIA+”;
Quaisquer violações de direitos de pacientes trans devem ser denunciados à Coordenação de Saúde LGBTQIA+ e à Ouvidoria da Saúde Municipal “para registro e posteriormente intervenção imediata”;
“A Secretaria Municipal de Saúde vai procurar a equipe do Curado I para reforçar os processos de matriciamento sobre cuidado e acolhimento a este público, bem como fazer a escuta da equipe de profissionais da unidade para melhor qualificar os atendimentos”.
Já a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), que administra o Hospital Barão de Lucena, informou que orienta os profissionais por meio de notas técnicas e portarias, além de oferecer qualificação sobre direitos e deveres dos trabalhadores e usuários LGBTQIA+ do SUS em Pernambuco.
Entre as ações, a secretaria destacou a portaria 063/2017, que obriga o uso do nome social e o preenchimento dos quesitos “Identidade de Gênero” e “Orientação Sexual” nas fichas, nos prontuários e nos demais sistemas de informação da rede estadual de saúde.
A SES-PE disse ainda que o estado possui 11 ambulatórios específicos para a população LGBTQIA+, distribuídos em oito municípios.
Além disso, a secretaria estadual afirmou que mantém os seguintes canais para o recebimento de denúncias de violações de direitos:
Central de Atendimento 136, com ligação gratuita;
O e-mail ou site da ouvidoria da SES-PE ([email protected]);
Atendimento presencial da ouvidoria nos hospitais da Restauração, Agamenon Magalhães, Getúlio Vargas, Otávio de Freitas, Barão de Lucena, Correia Picanço, Regional do Agreste e Jaboatão Prazeres.
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