Após 70 anos de atividade, a Casa Tody, loja de sapatos infantis mais antiga da cidade de SP, fecha as portas na Rua Augusta

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Imóvel foi vendido e deve virar prédio. Fundada em 1953 por uma família de imigrantes hungaro-judaicos, loja manteve suas características originais por décadas: prateleiras de madeira escura, a escada caracol e o carpete verde; clientes e especialista classificam o fechamento, que aconteceu nesta sexta-feira (23), como parte do fim da identidade de São Paulo. Últimos dias da Casa Tody, na Rua Augusta
Cíntia Acayaba/g1
Prateleiras vazias, cadeiras amontoadas na entrada e portas semicerradas esse foi o cenário da Casa Tody – a mais antiga loja de sapatos infantis em funcionamento na cidade de São Paulo – no mês de seu fechamento. A Casa fechou de vez nesta sexta-feira (23).
Após 70 anos de atividade e diversas propostas de compra do imóvel, a proprietária Katy Borger, 77, decidiu que a hora tinha chegado. A assinatura do contrato de venda para uma empreiteira foi feita no fim de dezembro de 2023. “Esses últimos anos foram muito difíceis e nós fomos aguentando, até que chegou um momento em que não deu mais”, revela.
Como a maioria dos comércios na região, o espaço da loja deve dar lugar a um prédio.
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Conhecida por seu carpete verde, suas prateleiras de madeira escura, repletas de sapatos, escadas deslizantes, e uma caracol ao fundo da loja, onde os funcionários perderam as contas do tanto que subiram e desceram para buscar diferentes numerações de pares no estoque, a loja viveu momentos áureos. Foi até cenário de filme (leia abaixo).
Poucos dias antes de fechar, Madalena Fenile, 88 anos, foi à Casa Tody se despedir. Foi ali onde ela fez seu enxoval de sandálias, número 32, para sua viagem de núpcias, em 1957.
“Era tudo de primeira categoria. O mundo mudou muito”, disse.
Madalena Fenile, 88 anos, cliente da loja Casa Tody
Cíntia Acayaba/g1
Do couro aos Crocs
No início da Casa Tody, o forte era a venda de sapatos de couro, fabricados pela própria loja, para os uniformes tradicionais por parte das escolas, como o centenário Colégio Dante Alighieri. Com o fim dos uniformes e a disseminação dos tênis, a loja precisou se reinventar.
“A gente até tentou contornar isso vendendo outros modelos como Crocs – o que sofreu muita resistência do meu pai -, mas mesmo assim foi uma baque muito grande”, conta Katy. Pares dos descolados All Star também foram vendidos nas últimas décadas.
Antes e depois do anúncio de fechamento da Casa Tody
Montagem/g1
Como a loja começou
A Casa Tody foi fundada em 1953 pelos patriarcas da família Frank – sobrenome de solteira de Katy – que vieram da Hungria. A primeira tentativa dos Frank em São Paulo foi o comércio de vinho, algo que já faziam na Europa. Contudo, o negócio não foi bem-sucedido e o pai e avô da atual proprietária resolveram abrir a loja de sapatos, dois anos depois de chegarem no país.
Katy Borger mostrando réguas originais para medição de sapatos, compradas no início da Casa Tody
Aline Freitas/g1
De 1953 a 1969, o empreendimento de sapatos infantis funcionava em uma garagem alugada do outro lado da rua do endereço atual. Porém, com o avanço econômico da região e o aumento do aluguel, os Frank decidiram comprar um antigo galpão e transformar no que hoje é a Casa Tody.
Casa Tody na época de seu lançamento no endereço e seu fundador, André Frank
Montagem/g1
“A loja passou por tudo, desde as mudanças de moeda até as mudanças da cidade”, conta Katy. Contudo, apesar do mundo que girava rápido da porta para fora, seu mobiliário resistiu e virou marcar registrada.
Quem fez a loja funcionar até agora
Edmar Batista, funcionário da loja Tody por 38 anos
Cíntia Acayaba/g1
Por conta da pandemia, a loja teve que reduzir seus vendedores de 8 para 2. Os que sobraram, Edmar Batista, 59, e Dalmo Silva, 50, nunca trabalharam em outro lugar.
Para Silva, a oportunidade que teve de trabalhar na Casa Tody foi mais do que especial. O vendedor trabalhou na loja por 27 anos. “Foi uma das melhores experiências da minha vida”, conta. “Tudo o que eu tenho é graças à Casa Tody”.
Batista, que trabalhou na loja por 38 anos, desde 1986, concorda. Natural de Jaguaribe (CE), o emprego foi o que garantiu a sua permanência em São Paulo. “O sr. André foi quem me abriu as portas”, afirma.
Apesar do sentimento de gratidão, os dois se mostram apreensivos com o futuro profissional com o fechamento da loja. “Agora estou nas mãos de Deus”, brinca Silva. “Vou procurar outro emprego, mas como só trabalhei aqui…”
“Eu não sou aposentado ainda, mas vou tentar ver isso agora”, afirma Batista.
Além dos dois, Andreia Ferraz, 59, e Sara Dias, 17, – gerente e estagiária da Casa Tody – também integram o quadro de funcionários de local e sentem a despedida do estabelecimento. “É triste porque a gente percebe que os clientes amam vir aqui”, diz Ferraz.
Dias começou a trabalhar na Casa Tody ainda em junho do ano passado e afirma ter ficado animada com a quantidade de clientes que visitaram a loja em seus últimos dias. “Todos que chegam têm uma história para contar de quando visitavam antigamente, é bem legal”, diz Dias.
“Eles não vêm comprar porque precisam, mas porque querem de despedir”, conta Ferraz. Segundo os funcionários, diferentes gerações da mesma família frequentavam a loja e era algo passado como uma tradição, de pai para filho.
Fachada Casa Tody
Aline Freitas/g1
O que fez a Casa Tody fechar
Segundo a dona, a loja sofreu muito com a queda de vendas durante a pandemia. “Foi o período mais grave de todos porque os meus funcionários são comissionados e nós não vendíamos, então não tinha dinheiro para pagá-los”, conta.
Ela relata ainda que a Casa Tody tentou se adequar ao e-commerce. “Não era uma venda online profissional”, conta Borger “A pessoa entrava pelo Whatsapp, informava o modelo que queria, para a gente ver se tinha aqui na loja e enviar pelos Correios”. Mesmo com as tentativas de migrar para o online, o volume de itens vendidos nunca voltou ao normal.
Casa Tody em seu último mês de funcionamento
Aline Freitas/g1 SP
Katy diz ainda que a mentalidade da loja não mudou ao longo do tempo, o que complicou a competição com marcas grandes que têm estratégias de marketing mais ‘invasivas’. “Quando eu assumi, fiz cursos de vendas, mas era difícil mudar a tradição da loja”, diz. “O mercado de vendas é um mercado agressivo e a gente não estava acostumado com isso”.
Identidade da Cidade
No filme “De Onde Eu Te Vejo”, de 2016, Denise Fraga interpreta Ana Lúcia, e que, por causa do trabalho, visita imóveis antigos para tentar convencer os donos a vendê-los para construtoras, como a Casa Tody.
Em um trecho do longa, Ana visita uma loja de sapatos femininos em que o dono se nega a vender, mas a oferece um par de sapatos de salto dourado. A personagem, então, fica encantada com o local e, mais para frente no filme, passa a repensar como suas idas aos imóveis representam para o futuro de São Paulo.
Para Pedro Beresin, mestre em História e Fundamentos da Arquitetura e professor da Escola da Cidade, as cidades perdem a identidade com o fechamento de endereços históricos e antigos. “Esses comércios e serviços, como a Casa Tody e os cinemas de rua, representam a possibilidade de uma experiência mais diversa e rica na nossa cidade”, diz. “Com a compra desses imóveis e a transformação deles em lojas de rede, fica tudo muito parecido, perde a identidade”.
“Esse é um dos lugares de São Paulo que para mim é referência. E por isso o sentimento que fica com o fechamento é o que eu sinto sobre o que está acontecendo no mundo todo: avacalhação generalizada, o fim das cidades”, explica Ricardo Vasconcellos, 60, um cliente antigo que revisitava a loja para se despedir.
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Cena do filme “De Onde Eu Te Vejo” gravada na Casa Tody
Reprodução/Facebook
Apesar do cenário de despedida, Katy e a nora Vanessa Borger, 51, que administra a loja atualmente, sentem que o dever foi cumprido.
“Eu não encontrei uma pessoa dizendo que estava na hora de fechar, que a gente já estava ‘caidinho’”, conta Vanessa, “Para mim, a história da Casa Tody é uma história de sucesso”.
Segundo elas, ver a loja cheia, antes do fechamento, e com um número alto de vendas, como era no passado, foi o que as fez ver o lado bom da história. “Estar cheio nesses dias é lindo, meu coração bateu até mais forte”, conta Vanessa.
No pior período de vendas da Casa Tody, a loja vendia cerca de cinco pares por dia. No sábado, 27 de janeiro, os funcionários registraram 1094 pares vendidos. O movimento era tanto que eles tiveram que organizar a entrada na loja por senhas.
Agora, o que a proprietária mai queria era que a marca de sapatos Tody sobreviva.
“A loja representa tudo para a minha família, porque nós éramos bem de vida na Europa e perdemos tudo quando chegamos aqui, ela foi o nosso sustento”, conta. “O que eu tenho a dizer é que eu adoraria que a marca continuasse. Eu nunca pensei nisso, mas pelo que eu vi nesses últimos dias, pelos meus clientes, eu gostaria que esse legado continuasse”.
* Com supervisão de Cíntia Acayaba
Escadaria da loja Casa Tody
Cíntia Acayaba/g1

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