Audiência pública na Aleac discute rede de atendimento psicossocial no estado: ‘estamos em um sociedade de luto’

Documento elaborado pelo Ministério Público revelou que chamados do Samu para atendimentos em saúde mental aumentaram 50% em um ano. Parlamentares e profissionais da área debateram reestruturação da rede. Audiência foi realizada nessa segunda-feira (12) e contou com a participação de parlamentares e profissionais da área de saúde mental
Reprodução/Rede Amazônica Acre
Uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), com a participação de diversos órgãos, debateu, nessa segunda-feira (12), o funcionamento dos atendimentos psicossociais na rede pública de saúde do estado e dos municípios acreanos.
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Um estudo realizado pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul, com o apoio da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e outras instituições, apontou que no período pós-pandemia houve um aumento de 41% nos casos de depressão em todo o país.
No Acre, com o objetivo de mensurar e pontuar melhorias no atendimento psicossocial, o Ministério Público estadual elaborou um documento que quantifica o aumento dessa demanda. Segundo os dados, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) atendeu, em 2019, 18 mil chamados relacionados à saúde mental. Já no ano passado, esses chamados foram quase 32 mil.
Para o psicólogo Fabiano Carvalho, apesar do tema ganhar cada vez mais espaço, ainda existe muito tabu, mitos e preconceito relacionados às doenças mentais.
“Passamos por uma pandemia e sentimos na pele o que é viver isolados, sentimos na pele a ansiedade de a qualquer momento perder alguém, perdemos pessoas. Estamos em uma sociedade de luto, precisamos ter uma rede, um atendimento maior a essa população. A população adoeceu muito esses tempos”, ressalta.
De acordo com a deputada estadual Michelle Melo, autora do requerimento para a audiência pública, falta estrutura e profissionais capacitados para lidar com essas doenças na rede pública.
“Nós temos mais procura nos serviços, nós temos mais atendimentos, nós temos mais pessoas com aquele sofrimento máximo, crianças, jovens, adolescentes, adultos. Isso é muito preocupante para nós, e a gente precisa que a rede seja estruturada”, afirma.
Rede de Atendimento Psicossocial é debatida em audiência pública na Aleac
Estudo
Uma pesquisa da Covitel, no ano passado, mostrou que a doença aumentou em 41% em todo o país e esse impacto pôde ser visto no número de atendimentos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), por exemplo. No Acre, com o objetivo de mensurar isso e também pontuar melhorias no atendimento psicossocial do estado e município, o Ministério Público Estadual (MP-AC) elaborou um documento que quantifica o aumento dessa demanda no estado.
O Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera) fez um estudo sobre esse aumento. Segundo os dados, o Samu atendeu, em 2019, 18 mil chamados relacionados à saúde mental. Já em 2021, esses registros aumentaram para 21.195. Porém, no ano passado, esses chamados fecharam em 31.757 – um aumento de 50% em um ano.
A coordenadora administrativa do Natera, Bruna Oliveira, pontua que durante a apuração para o levantamento, o que foi percebido é que essa rede de atendimento, que começa nas pontas, no atendimento primário, precisa ser fortalecida.
“Como nosso núcleo é de apoio e assistência psicossocial, recebemos muitas pessoas e famílias que vêm à procura de internações compulsórias, que vêm atrás de uma solução para questões de saúde mental, porém, a gente tem visto que a judicialização desses casos não é suficiente. A gente tem visto que a rede de atendimento à saúde mental está bem fragilizada, a própria política estadual de saúde mental está fragilizada”, pontua.
Mil pessoas na fila
Antes de chegar aos casos graves, esse paciente pode e deve contar uma rede de apoio psicossocial e de saúde que deve ser oferecida ainda na atenção primária. Analdemyra Moreira, coordenadora da rede de atenção psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco, pontua que existem algumas portas de entradas no serviço, mas garante que a demanda é muito maior do que o que é oferecido.
Segundo ela, é inegável que a pandemia puxou esse aumento e agora, em parceria com o Ministério Público, estão correndo atrás de se adequar e atender os casos que cabem ao setor primário. Com oito psicólogos atendendo em unidades de referência em saúde na capital, ela diz que há uma fila de mil pessoas aguardando o serviço, algumas delas esperando há 3 anos pelo atendimento.
“Hoje temos uma média de mais de mil pessoas aguardando na fila de atendimento psicossocial. Com relação ao atendimento da psicologia específico, nós temos uma nota técnica que as psicólogas devem usar e aí a gente estima quantos atendimentos aquele paciente pode precisar e depois desse tempo, continuam sendo acompanhados até serem liberados”, explica.
A permanência dessa pessoa nesse atendimento depende do diagnóstico e o tempo adequado para cada quadro. Desta fila, segundo a coordenadora, há pacientes aguardando atendimento desde 2020.
Capacitação
Nos casos graves, de surtos e crises, a porta de entrada é no Samu. Bruna Oliveira, do Natera, disse que o primeiro relatório foi feito na rede de urgência e emergência porque foi detectado que o paciente era atendido no Samu, estabilizado, mas, para seguir o tratamento havia alguns empecilhos. Então, o objetivo é melhorar toda a rede e não apenas um atendimento isolado.
“Em muitos dos casos, quando o Samu atendia, havia o primeiro atendimento, mas chegava na UPA os profissionais não tinham habilidades para lidar com uma pessoa que chegou lá como tentativa de suicídio, por exemplo. O médico muitas vezes dava uma medicação e alta. O que acontece? No dia seguinte, a pessoa estava lá novamente”, pontua.
Bruna diz que, seguindo o fluxo corretamente, ao ser estabilizado e fazer os primeiros exames em uma unidade de saúde, esse paciente precisa ser encaminhado para acompanhamento.
“A pessoa precisa de um atendimento mais especializado com psiquiatra e precisa dar continuidade a esse atendimento. O profissional da UPA vai regular o paciente para os leitos de saúde mental que ficam no pronto-socorro, mas muitos não chegam a ser regulados e não passam por avaliação psiquiátrica”, destaca.
Falta de estrutura
Há 18 leitos de saúde mental no pronto-socorro de Rio Branco, sendo oito masculinos, seis femininos e quatro destinados a adolescentes. Com relação a psicólogos no estado, são 54, e cinco psiquiatras.
Já no Hospital de Saúde Mental do Acre, que fica em Rio Branco, só no passado foram 30.156 atendimentos, entre consultas ambulatoriais, atendimentos de emergência, internações, atendimento com psicólogos e atendimento de serviço social.
Porém, em relação ao estado, essa estrutura ainda deixa a desejar. “Nos leitos também há dificuldades, falta de equipe, a estrutura dos leitos acaba sendo insuficiente. Há ainda o fato desse leitos serem de porta aberta, que não podem prender o paciente, e a gente vê que a equipe não tem preparo para dar atenção ao paciente, que muitas vezes sai de lá e a equipe não vê. Não tem um certo manejo em saúde mental, estava faltando medicamentos, medicamentos importantes para estabilização de casos em crises. Imagina, se no leito de saúde mental está faltando medicamento, como a pessoa vai estabilizar”, destaca Bruna.
Além disso, foi constatado internações muito breves, que fogem da orientação. “Não precisa nem ser especialista para entender que um medicamento, para ele começar a fazer efeito, ele leva um certo tempo, então como que em menos de 48 horas, um paciente recebe uma alta, sendo que o próprio remédio psiquiátrico não começou nem fazer efeito. Então, tem certas condutas médicas que a gente também descreveu que precisavam ser analisadas, então, em cada dispositivo desse a gente conseguiu identificar muitas falhas e muita necessidade”, reforça.
Exemplo disso, é que em maio deste ano, o Hosmac chegou a ter falta de dez tipos de medicamentos. De Sena Madureira, interior do estado, uma paciente, que preferiu não se identificar, conversou com a equipe da Rede Amazônica Acre e relatou o sufoco enfrentado. Ela saiu de casa para pegar medicação no Hosmac, mas, ao chegar na unidade, soube que não havia remédio e teve que voltar de mãos vazias.
“Estou em crise porque é muito caro esse remédio e não tenho. Tomo seis tipos de remédios e vitaminas e tenho um só”, criticou na época.
Rede primária fragilizada
Essa alta demanda no setor de alta complexidade, segundo Bruno, também é reflexo da fragilidade no setor primário, visando a prevenção e acompanhamento dos casos.
“O que também interfere nessas questões de rede de urgência e emergência, a própria rede de atenção primária elas estão bem precarizadas. Ainda não aderiram na questão da saúde mental, da prevenção e, quando esses casos não são vistos na atenção primária, eles explodem apenas na média e alta complexidade, que é o que tem acontecido no nosso estado. E nossa intenção é fazer esse mesmo trabalho na porta das unidades primárias para fazermos o mesmo trabalho com a secretaria municipal de saúde em Rio Branco, queremos mostrar números, dados e melhorar essa política pública voltada para a saúde mental. Muitos casos podiam ser atendidos na atenção primária se ela tivesse sido organizada, mas o Estado acaba atendendo tudo.
Alta demanda
Analdemyra Moreira, coordenadora da rede de atenção psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco reconhece a alta demanda, mas esclarece também que há um esforço da rede municipal de atender esses pacientes. Segundo ela, está previsto a contratação de, pelo menos, 10 psicólogos a mais para reforçar essas equipes.
“Há casos graves atendidos pela rede de atenção psicossocial que é pelo CAPs Samaúma, que atende casos graves e persistentes. Quando uma pessoa está em sofrimento intenso e é atendida pelo Samu, ela sai de lá do PS ou das UPAs, com encaminhamento para serviço especializado. E o Caps Samaúma é porta aberta, ao chegar lá, a pessoa passa pelo atendimento e fazem encaminhamento”, pontua.
Além dessas consultas, há também grupos terapêuticos e atividades complementares que são executadas por multiprofissionais.
“Nossa oferta é pequena porque realmente aconteceu um episódio. Não estamos de braços cruzados, mas, infelizmente, por conta da pandemia essa situação se agravou muito.
Há também o serviço para atender pessoas em situação de rua, em uso de álcool, crack e outras drogas, que são concentrados no Consultório na Rua, que faz atendimentos itinerantes e no Centro Pop.
Restruturação da rede psicossocial
O tema foi alvo de debate em audiência pública na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) e também o relatório foi entregues às autoridades de saúde, entre elas, o secretário da pasta, Pedro Pascoal, que reconheceu que é preciso uma reformulação e atenção maior a esse serviço no estado.
O gestor diz que a saúde mental foi esquecida pelo poder público e que agora é necessário ter esses números para reavaliar o serviço.
“A saúde mental é subdimensionada e temos menos profissionais do que precisamos, e, a nível nacional, nós levantamos que essa situação de falta de capacitação, treinamento e até mesmo estruturamento da rede psicossocial é uma realidade. A rede de cuidados psicossociais foi, de certa maneira, esquecida. Tivemos agravamento durante e pós pandemia, que estão deixando sequelas na população e agora é o momento para reavaliar fluxos, talvez organizar unidades, organizar algumas unidades assessoras, unidades extras, Hosmac, trabalhar a política antimanicomial. Enfim, é um trabalho conjunto entre MP, secretaria de Saúde e um ponto que estou vendo muito é que o Ministério Público vem se tornando cada vez mais parceiro”, avalia.
‘Não é prioridade’
Marcos Araripe, uma das referências em psiquiatria no estado e também membro do Conselho Regional de Medicina (CRM-AC), diz que a pandemia realmente acentuou as doenças psicológicas da população.
“Aumentou em virtude do pânico coletivo de contrair o vírus que era algo desconhecido e que poderia ser fatal aos indivíduos e aos seus familiares e para o meio científico e crise financeira em virtude do lockdown pela falta de acesso às consultas psiquiatras”, destacou.
Ele destacou também a falta de incentivo do poder público para a área nos últimos anos e que a saúde mental nunca foi tratada como prioridade.
“Ao longo de décadas o poder público não desenvolveu políticas públicas para a saúde mental, como ampliação e criação de hospitais gerais ou especializados em saúde mental ou criação de equipe multidisciplinar em saúde mental, além da garantia e manutenção de psicofármacos. Não se tem tratado como prioridade. Qual o investimento foi feito nos últimos oito anos no estado para essa temática?”, questiona.
Tratar o tema de forma relapsa impacta diretamente na sociedade como um todo, causando superlotação e alta demanda reprimida nas unidades.
“Com isso, há aumento dos transtornos mentais moderados a graves, como suicídio e depressão e dependência química e aumento e recidiva dos números de internação psiquiátricas involuntárias e compulsórias em virtude da desassistência médica e medicamentosa e da equipe multidisciplinar”, destaca.
Além da saúde, há um impacto grande na área social, uma vez que também há aumento no número de moradores de rua ou de pessoas em conflito com a lei. Araripe reforça ainda que esses números só devem começar a mudar quando a saúde mental for tratar como deve.
“O incentivo real na saúde mental, o fortalecimento da rede de atenção psicossocial; capacitação constante a equipe multidisciplinar criação de ambulatório especializado em saúde mental; a garantia dos psicofármacos amparada por lei que constam na Renume [Relação Municipal de Medicamentos] e Rename [Relação Nacional de Medicamentos Essenciais], além da regionalização da saúde e capacitação e matriciamento especializado da atenção básica”, enumera.
10 anos de Natera
O Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) celebrou este ano os 10 anos de criação do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera). O órgão auxiliar atua no atendimento de pessoas, famílias e grupos que tem questões relacionadas ao uso prejudicial e/ou abusivo de álcool e outras drogas, bem como demais questões de saúde mental e outras vulnerabilidades e riscos sociais que afetam a dimensão psicossocial.
Criado pelo Ato n. 33/2013 da Procuradoria-Geral de Justiça do MPAC e instituído pela Lei Complementar n. 291/2014, o Natera não substitui os serviços públicos de proteção social ou de atenção psicossocial, mas trabalha em conjunto com as redes de atendimento para aproximar a demanda identificada aos órgãos de atendimento do poder executivo.
Nos últimos três anos até o começo de 2023, o Natera fez mais de 8,3 mil atendimentos. Sendo que em 2022, esse número também bateu recorde, com 4.386 atendimentos.
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