Documentário gravado em RR sobre jornadas de três migrantes venezuelanos no Brasil estreia em festival nacional de cinema em SP

“Aqui en la Frontera” imerge espectadores na maior crise migratória da América Latina do ponto de vista dos migrantes e refugiados. Exibições ocorrem nos dias 5 e 9 de junho, em São Paulo. O documentário acompanha as jornadas de Francis, Stephanny e Argenis
Reprodução/Platô Filmes
Três histórias distintas de venezuelanos que viveram a migração entre a Venezuela e o Brasil, contadas no documentário roraimense “Aqui en la Frontera”, serão exibidas na 12ª Mostra Ecofalante de Cinema, em São Paulo, nos dias 5 e 9 de junho. O trabalho reúne a forma como cada um dos personagens reais teve que lidar com o deslocamento forçado do país de origem.
O documentário retrata a história de Stephanny, mãe aos 21 anos, no retorno para a Venezuela em busca da filha; a luta de Francis, mulher trans e líder comunitária de um abrigo para refugiados militarizado do governo brasileiro; e de Argenis, líder da ocupação Criança Feliz em Boa Vista com mais de 300 venezuelanos que sofrem ameaças de despejo.
Filmado em 2022 na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, o longa dirigido pelo casal Marcela Ulhôa e Daniel Tancredi busca fugir da frieza dos números e estatísticas sobre um dos maiores fluxos migratórios da América Latina, com uma abordagem sensível e humanizada. O g1 conversou com os diretores para entender melhor o processo de produção do documentário e o impacto que ele busca causar.
Marcela Ulhoa, jornalista e mestre em Literatura pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), morou em Roraima por oito anos. Em 2017, quando a migração já estava em curso, ela se juntou a um grupo de outros acadêmicos para pensar em possibilidades de entender e retratar a nova realidade que surgia, com muitos migrantes morando em Boa Vista.
Já o fotógrafo Daniel Tancredi, que participou de outras produções como o documentário “História da Alimentação Brasileira” (2016), “Rabiola” (2021) e “O Bom Cinema” (2020) se depois juntou ao projeto sobre migração. Ele conta que devido à falta de recursos, a produção aconteceu de forma lenta e paciente, o que permitiu um processo de maior imersão nas histórias.
Com o filme, os diretores buscaram evidenciar a noção de pertencimento e construir a história a partir da vivência das pessoas migrantes e refugiadas. A ideia não era fazer um documentário clássico, com especialistas comentando sobre o fluxo migratório ou entidades envolvidas no acolhimento, mas, escutar e acompanhar quem de fato passa pelo processo: os migrantes.
“Foi um filme de muita escuta, para chegar no resultado que temos hoje: um filme íntimo, que acompanhou de perto os personagens com a câmera. Ficamos alguns dias dormindo na ocupação Criança Feliz e eu também atravessei a fronteira e fui até a Venezuela com a Stephanny, que me convidou pra ficar na casa dela”, conta o diretor.
A abordagem mais próxima e intimista também teve o objetivo de sensibilizar pessoas que estão mais distantes da fronteira, e que conhecem o fenômeno da migração apenas pelo factual e pelas estatísticas. A ideia é não retratar os migrantes e refugiados de forma genérica.
“A gente não tá falando de migrantes de forma genérica. Uma mulher trans vai ter uma experiência diferente de migração. Uma jovem migrando com uma filha sozinha, um homem solteiro e uma pessoa mais velha, também”, frisa a cineasta.
Eles contam que outro objetivo era documentar o momento histórico. Assim, o filme serve de referência para quem quer estudar e se aprofundar no assunto a partir do ponto de vista dos próprios migrantes.
‘Comunicar e mobilizar afetos’
Com mais de 60 horas de material produzido e um corte final de apenas 1 hora e 26 minutos, os cineastas contam que a seleção das trajetórias documentadas ocorreu de forma natural. A partir dos temas que buscavam investigar, como a reposta do governo brasileiro para a crise e o receio de alguns migrantes de se distanciarem por completo da Venezuela, Stephanny, Francis e Argenis se tornaram os protagonistas.
Sobre a relação com os personagens retratados, os diretores citam a firmação de um pacto de confiança, onde são desenvolvidas questões como carinho e respeito. Além disso, nasce também um desejo de ver o desenrolar da vida dessas pessoas após o acolhimento em território brasileiro.
“O Daniel ficou próximo da Stephanny, a mãe dela manda mensagem até hoje e estávamos falando coma ela ontem. A Francis também, que tá no Rio de Janeiro, está sempre se comunicando com a gente. Ela vai pra exibição em São Paulo”, conta Marcela.
Reação dos personagens com o resultado
Stephanny e Francis já assistiram o conteúdo final. Os diretores perderam o contato com Argenis recentemente, mas que esperam que ele possa assistir ao filme em algum momento.
“É mais fácil você ouvir os áudios da Francis do que a gente explicar (risos). Foi um momento muito forte da vida dela, gravamos logo antes dela ser interiorizada pelo governo. Ela orientava a câmera e o que queria, ela amou. Quando ela assistiu, ela reviveu toda a fase intensa do abrigo e dos momentos marcantes”, conta Daniel.
Foi na casa de Stephanny, em El Tigre, na Venezuela, onde foram gravadas as cenas mais familiares do longa. A sequência mostra uma reunião familiar tradicional da cultura do país, com direito a música e até a cena do preparo de uma arepa, prato típico da culinária venezuelana.
“Ela foi uma das que a gente mais entrou na intimidade para além da questão da migração. Fomos na casa dela, com a mãe dela e com a filha. Foi um grau de intimidade da vida ‘extra-migração’ que a gente agradece muito a ela e à família dela por ter nos aberto”, reconhecem.
Marcela conta que uma amiga pessoal, também migrante, que não passou pelo processo de acolhimento, assistiu ao filme e comentou: “Essa é uma mãe venezuelana. Eu vejo a minha mãe ali”. Para a diretora, esse tipo de impacto, de retratara a realidade, é um dos objetivos da produção.
O documentário evidencia a importância das redes de afeto e apoio no enfrentamento quando a pessoa decide migrar para outro país, o que inclui a incerteza em relação ao futuro, a intolerância e a própria condição de pessoa migrante.
Para Marcela, um dos momentos mais marcantes da produção foi o fim da ocupação Criança Feliz, da história de Argenis. Ali ela conta que parecia ser um momento de ruptura de uma dessas redes de afeto.
“Não se sentir sozinho nesse processo de deslocamento, sentir que existe uma rede de pares que tem atravessado situações semelhantes às suas e que estão apoiando a partir da sua autonomia também. O fim daquele espaço parecia uma ruptura desse processo de fortalecimento daquelas pessoas enquanto coletivo”, relembrou.
Marcela também conta que outro momento marcante foi a despedida de Francis. Ela vivia no abrigo do bairro São Vicente e foi interiorizada para o Rio de Janeiro. A diretora conta que todos ficaram emocionados e relembra o poder de liderança de Francis no contexto de um abrigo militarizado como uma mulher trans.
Já Daniel relembra a energia calorosa com que as pessoas recebiam os produtores. Para ele, chama a atenção que mesmo em um processo tão complicado, os migrantes e refugiados mantinham um alto astral, e demonstravam uma “resiliência Incrível”.
A concepção de “fronteira”
De forma sutil, a produção provoca um debate sobre o conceito de “fronteiras” e mostra que o deslocamento é apenas uma das travessias que os venezuelanos enfrentam, que se estendem para outros aspectos da condição de pessoa migrante ou refugiada.
Os diretores destacam que “não é só cruzar a fronteira”, e que o estado de movimento, rupturas, lutas e criação de novas relações é diário e constante.
“A fronteira não é física, existe uma fronteira que é a fronteira que cada um individualmente tem que passar o tempo inteiro. Essas talvez sejam as mais difíceis: a emocional, a psicológica, a cultural, a de pertencimento e a burocrática. São muitas”, ressalta Marcela.
Para os dois, os que participam do acolhimento das pessoas migrantes e refugiadas também enfrentam barreiras, como não se deixar afetar pela realidade deles e precisar ser burocrático nas relações. Para eles, por mais que o acolhimento dure pouco, a criação de laços é necessária, para fomentar a ideia de pertencimento dos migrantes e, assim, não deixar que a experiência se torne fria.
Outro aspecto do produção é a mistura cultural que ele promove. Apesar de ser um filme brasileiro, teve a participação de profissionais venezuelanos em sua concepção, como a assistente de direção Yareidy Rivas e os músicos Benjamin Mast e Fernando Millan, responsáveis pela trilha sonora original do longa.
Mostra Ecofalante de Cinema 2023
A 12ª Mostra Ecofalante de Cinema é um evento gratuito que ocorre em São Paulo entre os dias 1 e 14 de junho em mais de 30 espaços culturais espalhados pela capital. No total, a atual edição contará com a exibição de 101 filmes.
Espaço Itaú de Cinema, unidade da Augusta
Espaço Itaú Cinema/Divulgação
A Ecofalante, organização não-governamental que organiza a mostra,foi fundada em 2003 com o objetivo de criar e trabalhar em projetos que contribuíssem para o desenvolvimento sustentável do planeta por meio da educação e da cultura.
Exibição
Espaço Itaú de Cinema – Augusta – Sala 4 – Segunda-feira (05/06/2023) às 21h (de Brasília)
Centro Cultural São Paulo – Sala Lima Barreto – Sexta-feira (09/06), às 19h30 (de Brasília)
Ficha Técnica
Direção: Marcela Ulhoa e Daniel Tancredi
Assistente de Direção: Yareidy Rivas
Montagem: Luiz Pretti
Direção de Fotografia: Daniel Tancredi
Produção: Platô Filmes
Pesquisa: Julia Camargo e Marcela Ulhoa
Trilha Sonora Original: Benjamin Mast e Fernando Millan
Som Direto: Daniel Tancredi
Edição de Som: Victor Jaramillo e Bianca Martins
Mixagem de Som: Victor Jaramillo
Cor: Daniel Tancredi
Tradução: Estefanía Rodríguez
Legendas: ETC Filmes
Design: Molde.cc
Ilustrações: Felipe Cavalcante
*Estagiário sob supervisão de Valéria Oliveira
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