Caso Ramagem: Legislativo pode avocar apreciação de cautelares diversas da prisão?

Por mais que a coluna passada tenha reiterado o propósito desta Defensor Legis, o texto de hoje pede um disclaimer adicional para registrar que aqui não se fazem críticas a pessoas, não se emite juízo depreciativo a qualquer instituição, tampouco se manifestam opiniões político-partidárias, nem se nega a autoridade de quaisquer decisões judiciais. As considerações que vêm na sequência são de ordem técnica e à luz da própria jurisprudência do STF.

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Foi amplamente noticiada a busca e apreensão que teve por objeto a residência e o gabinete parlamentar do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) no último dia 25. A determinação foi feita no âmbito da Pet 12.027, cujos autos correm em sigilo, mas foram disponibilizados a decisão e o parecer da PGR no site do STF.

Considerando que essas providências que atingem o universo parlamentar são um interesse antigo da coluna, convém aproveitar o texto de hoje para inventariar alguns dos velhos e novos problemas na matéria, tal como feito nos casos Chico Rodrigues, Eduardo Cunha, Renato Freitas e Rogério Marinho.

Da leitura da decisão, é possível perceber que os fatos investigados envolvendo o parlamentar dizem respeito a período anterior ao seu mandato. Nesse caso, a rigor, em aplicação ao entendimento do próprio STF por ocasião do julgamento da AP 937-QO, o foro por prerrogativa de função não seria aplicável ao parlamentar, que deveria ser julgado pela primeira instância.

Como sabido, nos termos literais do art. 53, § 1º, da CF, com redação dada pela EC 35/2001, os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o STF.

Entretanto, reinterpretando a extensão dessa disposição constitucional na AP 937-QO, a Corte aprovou as seguintes teses: (i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.

O entendimento gerou diversas incoerências, algumas comentadas em texto passado a respeito do caso do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), e em parte já resolvidas pelo STF, como no caso dos mandatos cruzados. Como explicado, o objetivo da Corte foi combater o chamado “elevador processual”, isto é, o indesejável sobe e desce à primeira instância, acarretando a prescrição de ações penais envolvendo parlamentares que mudaram de cargo.

Não é o caso de reiterar os comentários já feitos à “reinterpretação constitucional” consubstanciada na decisão da AP 937-QO. Basta registar que, concorde-se ou não com a tese, à luz dela, o STF deixou de ser o foro competente para investigações contra parlamentares por fatos anteriores à sua diplomação.

Ocorre que já há algum tempo o próprio STF vem descumprindo esse seu precedente. Isso aconteceu, por exemplo, nos casos do senador Sergio Moro (União-PR) em tramitação na Pet 11.199, e no recém-instalado inquérito por força da Pet 11.450.

O fato é que o entendimento da AP 937-QO se tornou insustentável, pelos tantos remendos e flexibilizações. Então, o correto seria a Corte rediscutir o assunto, porque pior do que o cumprimento de uma regra ruim é que não haja regra alguma. Não pode haver casuísmo em competência criminal, porque envolve a garantia do juiz natural prevista no art. 5º, inciso LIII, da CF.

Voltando para a decisão da Pet 12.027 em comento, a partir da página 33, restou explicado que a Polícia Federal requereu diversas medidas cautelares diversas da prisão, com fundamento no art. 319 do CPP, incluindo a suspensão do exercício da função parlamentar em relação ao deputado Ramagem.

O parecer da PGR foi contrário à adoção da providência. E a decisão tampouco vislumbrou atual necessidade e adequação, sem prejuízo de reanálise se o investigado utilizar suas funções para interferir na produção probatória.

Em relação às medidas cautelares efetivamente determinadas, a decisão chegou a proibir os demais investigados de se ausentarem, sem autorização do juízo, do Distrito Federal, mas textualmente excepcionou dessa providência o parlamentar (página 37). Como sabido, é inerente ao parlamentar a necessidade de deslocar-se às bases de seu Estado de origem. Qualquer limitação nesse trânsito impossibilita o pleno e regular exercício de suas funções legislativas.

Por outro lado, às páginas 34 e 38 da decisão, foi determinado que, em relação aos requerimentos que o deputado Alexandre Ramagem tenha enviado na qualidade de membro da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), as eventuais respostas dos órgãos destinatários deverão ser submetidas ao ministro relator do STF, em face do sigilo das investigações. Ainda determinou-se que sejam oficiadas a PGR, Polícia Federal, CGU e Abin para garantir o atendimento dessa ordem.

Essa determinação em específico representa uma medida cautelar inominada no processo penal, cuja juridicidade é questionável (aqui, por exemplo, já se defendeu sua impossibilidade). E o mais grave está em que, na prática, a providência determina uma “interceptação” de informações sigilosas, cujas guarda e sigilo pertencem exclusivamente ao Poder Legislativo, no exercício da função de controle externo da atividade de inteligência.

Ao que parece, a providência foi adotada precisamente para não retirar o deputado da condição de membro da CCAI, o que caracterizaria uma indiscutível interferência no pleno e regular exercício do seu mandato parlamentar. Inclusive, esse também parece ter sido o motivo para não incluí-lo na proibição de ausentar-se do Distrito Federal, sem autorização do juízo.

Nessas situações (de imposição de medidas cautelares diversas da prisão que, direta ou indiretamente, interferem no pleno e regular exercício do mandato parlamentar), os autos da decisão judicial precisam ser remetidos dentro de 24 horas à Casa Legislativa respectiva, nos termos do art. 53, § 2º, in fine, da CF, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. Ao menos, isso é o que restou decidido pelo próprio STF na ADI nº 5.526.

Pois bem. Ocorre que, mesmo sem retirar o parlamentar da CCAI, a determinação no sentido de que as respostas aos requerimentos de informação assinados pelo deputado investigado sejam submetidas ao relator do STF implica violação da prerrogativa parlamentar quanto ao sigilo da fonte. Mesmo que os autos judiciais corram em sigilo. Explica-se.

Nos termos do art. 53, § 6º, da CF, com redação dada pela EC 35/2001, os deputados e senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações.

Pelo referido dispositivo, os congressistas não podem ser intimados pela autoridade judicial para prestar testemunho, nem conduzidos “debaixo de vara”, mas apenas convidados, com a prerrogativa de serem inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados entre eles e o juiz (art. 221 do CPP). Essa garantia alcança o testemunho sobre quaisquer fatos ou informações de que o congressista tem conhecimento em função de sua condição de parlamentar. Tem razão de ser na própria separação de poderes (art. 2º da CF).

Aqui cabe um parêntese. Essa mesma garantia do sigilo da fonte também pode estar sendo comprometida com a busca e apreensão do aparelho celular do parlamentar. Idêntico comentário é cabível também em relação ao caso do deputado Carlos Jordy (PL-RJ) (Pet 11.986), noticiado aqui.

É sabido que as prerrogativas do Estatuto dos Congressistas são do cargo, e não da pessoa que o ocupa, não podendo servir como escudo para a prática de ilícitos. Ocorre que o abuso das prerrogativas, incluindo o sigilo da fonte, é matéria a ser examinada pelo próprio Poder Legislativo (art. 55, § 1º, da CF). É nessa instituição que o parlamentar deve ser julgado, pelos próprio pares.

Voltando para a determinação judicial em comento sobre os documentos a serem destinados à CCAI, tem-se que a medida esvazia o sigilo da fonte parlamentar: independentemente de sua convocação ou testemunho pessoal, a autoridade judicial já tomará conhecimento de todas as fontes e informações sigilosas em resposta aos requerimentos formulados no âmbito da CCAI.

Outro ponto importante: conforme a Resolução 2/2013 do Congresso Nacional, que disciplina a atuação da CCAI, a competência para enviar pedidos escritos de informação é colegiada da própria comissão (arts. 4º e 10) e precisa seguir o rito do art. 50, § 2º, da CF, isto é, passar pela Mesa da Câmara ou do Senado. Assim, os pedidos não são uma iniciativa individual do parlamentar membro da comissão. Além da CCAI, a Mesa também precisará ter concordado com o pedido. Dito mais enfaticamente, a decisão interfere na atribuição da CCAI como um todo e também no mandato parlamentar de todos os demais deputados federais e senadores que a compõem.

Por tudo isso, a medida cautelar determinada na decisão em comento (páginas 34 e 38) precisaria ser apreciada pela Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, no caso, a Câmara dos Deputados, em consonância com o decidido na ADI 5.526 já mencionada.

Ocorre que os autos ainda não foram remetidos pelo STF à Casa Baixa. Daí a pergunta que dá título à coluna de hoje: se o tribunal não envia os autos, pode o Poder Legislativo avocar a apreciação das cautelares diversas da prisão?

Tal avocação não conta com previsão constitucional expressa. O texto do art. 53, § 2º, da CF se limita a prever o prazo de 24 horas para envio dos autos, sem fixar consequências. Atente-se que tal prazo constitucional é dirigido ao tribunal, não para a própria Casa Legislativa tomar sua decisão. Inclusive, em 2017, no caso Aécio Neves (PSDB-MG) o Senado demorou 21 dias para apreciar as cautelares diversas que influíam no mandato (o senador estava afastado). As cautelares tinham sido aplicadas no dia 26 de setembro e foram rejeitadas somente no dia 17 de outubro.

Precisamente porque a decisão legislativa referida no art. 53, § 2º, in fine, da CF pode ocorrer a qualquer tempo, reputa-se possível a avocação por parte do presidente da Casa Legislativa, com fundamento na teoria dos poderes implícitos: como a Constituição conferiu à Casa Legislativa o poder de dar a palavra final sobre a prisão (e, pela ADI 5.526, também sobre as cautelares diversas), conferiu, implicitamente, os meios de ação necessários à consecução e preservação dessa competência.

A doutrina dos inherent powers para a consecução da missão constitucional já foi reconhecida a diferentes órgãos, a exemplo do Ministério Público, TCU, CNJ ou Defensoria Pública, e conta com o aval da jurisprudência do próprio STF (RE 593.727, MS 35.506, MS 38.055, AgR ADI 6.875). Então, seria natural reconhecer tais poderes implícitos às Casas Legislativas.

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), art. 17, inciso VI, alínea g, prevê que compete ao presidente zelar pelo prestígio da Câmara e pelo respeito às prerrogativas constitucionais de seus membros, em todo o território nacional. Com isso, tem-se fundamento jurídico para uma eventual avocação.

Dado o caráter misto da comissão, formada por deputados e senadores, seria possível defender que até mesmo o presidente do Congresso Nacional teria competência para fazê-lo, com base no art. 48, inciso II, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), aplicável por força do art. 151 do Regimento Comum do Congresso Nacional (RCCN).

O dispositivo referido regimental atribui ao presidente o dever de velar pelo respeito às prerrogativas do Senado e às imunidades dos Senadores também afetados, enquanto membros da CCAI, dada a natureza colegiada dos requerimentos formulados, e cujas respostas doravante serão previamente submetidas ao STF.

Entretanto, saindo da abstração do Direito e ingressando no mundo real da política, sem a certeza de votos necessários para derrubar uma medida cautelar, é pouco provável que parlamentares e partidos façam pressão nesse sentido ou que o presidente da Casa Legislativa assuma o desgaste político de uma avocação dessa natureza junto ao STF.

Mas o perigo disso tudo é o Poder Legislativo ir se apequenando à medida que suas prerrogativas vão sendo paulatinamente diminuídas por decisão judicial, abalando o equilíbrio e a harmonia entre os poderes.

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