Por que os bancos brasileiros resistem melhor às altas de juros do que os americanos?

Nos Estados Unidos, três bancos já quebraram e outros passam por dificuldades. Em contrapartida, as instituições brasileiras continuam lucrando, já que o sistema é mais concentrado e regulado, o que ajuda a explicar a resiliência. Agência do First Republic Bank, em Nova York.
Reuters
Apesar dos últimos aumentos feitos nas taxas de juros, os bancos brasileiros continuam entregando resultados bilionários. No primeiro trimestre de 2023, o lucro agregado das quatro principais instituições financeiras do país foi de R$ 23,35 bilhões.
Curiosamente, essa realidade contrasta bastante com a situação dos bancos nos Estados Unidos.
Por aqui, o Banco do Brasil foi o banco com o maior lucro líquido do período: R$ 8,6 bilhões, alta de 29% no primeiro trimestre em relação a igual período de 2022. Em seguida, o Itaú Unibanco acumulou R$ 8,43 bilhões. Bradesco e Santander reportaram uma queda no resultado, mas ainda assim lucraram R$ 4,28 bilhões e R$ 2,14 bilhões, respectivamente.
Já na maior economia do mundo, desde meados de março, não param de surgir bancos com graves problemas, causados justamente pela elevação das taxas no país, que hoje chegam a 5,25% ao ano.
Esta matéria vai abordar:
O que está acontecendo nos Estados Unidos
Qual o “segredo” dos bancos brasileiros
A prática dos bancos brasileiros com o sobe e desce dos juros
As estratégias de investimentos adotadas pelos bancos americanos que não deram certo
A concentração dos sistemas bancários nos dois países
A forte regulamentação dos bancos no Brasil
O que está acontecendo nos Estados Unidos?
Com a disparada dos juros, que haviam sido zerados pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) no começo da pandemia, os clientes — tanto pessoas físicas quanto empresas — passaram a retirar seus recursos, que estavam rendendo muito pouco, dos bancos.
Parte desse dinheiro foi utilizada para pagar as contas, já que a inflação está alta no país, mas o outro montante foi reinvestido em outras instituições e aplicações financeiras, que ofereciam uma rentabilidade melhor.
Assim, parte dos bancos americanos sofreu uma grande quantidade de saques com os quais não estavam preparados para lidar.
No dia 10 de março, o primeiro caso de quebra veio do Silicon Valley Bank (SVB), banco regional que atendia muitas empresas de tecnologia, principalmente startups.
Apenas dois dias depois, o Signature Bank foi fechado por órgãos do sistema financeiro americano, também por problemas de liquidez. O mesmo aconteceu com o First Republic Bank, que no começo de maio foi comprado pelo gigante J.P. Morgan.
Qual o ‘segredo’ dos bancos brasileiros?
Não que os juros altos não atinjam os bancos brasileiros, mas isso ocorre de forma diferente. O grande problema de uma Selic maior é o crescimento da inadimplência (a quantidade de pessoas que fica devendo para o banco), que elevam também as provisões dessas instituições financeiras.
As provisões são valores reservados pelos bancos para cobrir eventuais calotes, e servem para garantir a saúde financeira e operacional dessas instituições.
Assim, quanto maior o juro, maior tende a ser o grau de endividamento das famílias — o que, consequentemente, aumenta os índices de inadimplência dos bancos e a quantia destinada a provisões, impactando negativamente no lucro dessas companhias.
No caso do Bradesco e do Santander, por exemplo, a inadimplência subiu a 5,1% e 3,2%, respectivamente, o que explica, em parte, a queda nos lucros desses bancos.
Já no Itaú Unibanco, a taxa se manteve estável em 2,9%. O Banco do Brasil também apresentou estabilidade, em 2,62%.
Mas há uma série de fatores que explicam por que uma quebra dos bancos no Brasil está tão distante, mesmo em um ambiente como esse. Segundo especialistas ouvidos pelo g1, as principais razões são:
o Brasil já é mais acostumado a viver com juros altos e longos ciclos de aperto monetário;
os bancos brasileiros têm uma estratégia de investimentos diferente dos americanos, que, na pandemia, investiram em títulos que os colocaram em um problema de liquidez, ou seja, não tinham dinheiro suficiente em caixa para os saques;
o Brasil conta com uma regulamentação mais conservadora e rígida para os bancos, como forma de proteger o sistema contra quebras;
o sistema bancário brasileiro é bem mais concentrado que o americano, com poucos bancos contando com dezenas de milhões de clientes, o que reduz o risco de quebra.
Entenda mais detalhes abaixo.
Taxa Selic: entenda o que é a taxa básica de juros da economia brasileira
Sobe e desce dos juros é comum no Brasil
Alexandre Silverio, diretor-executivo da Tenax Capital, explica que o Brasil já é um país acostumado com ciclos de aperto na política monetária e, por isso, os bancos sabem navegar na maré dos juros altos.
Dessa forma, quando a taxa Selic voltou a subir em 2021, em uma tentativa do Banco Central do Brasil de controlar a inflação, as principais instituições financeiras do país já começaram a projetar a possibilidade de os juros caminharem até um patamar de dois dígitos, o que de fato aconteceu.
Os bancos brasileiros também costumam adotar estratégias de investimentos que possam oferecer bons resultados em diversas situações.
Charbel Zaib, economista-chefe da Arcani Investimentos, afirma que, por aqui, as instituições costumam alocar boa parte de seus recursos nos títulos pós-fixados, que são aqueles que têm seu rendimento atrelado à variação da taxa de juros. Assim, se a Selic sobe, o título também vai render mais.
Estratégia de investimento equivocada
Nos Estados Unidos, a estratégia de investimentos foi outra: os bancos optaram por títulos prefixados. Esses títulos, como o próprio nome sugere, têm uma rentabilidade definida já no momento da compra. Ou seja, não variam se a taxa de juros sobe. E a escolha foi tomada justamente pela “falta de prática” dessas instituições com os juros altos.
Silverio diz que, desde a crise financeira de 2008, o Fed vinha trabalhando com taxas de juros baixas, que estimulam a economia em momentos difíceis.
Isso se intensificou em 2020, com a pandemia de Covid-19. Com as paralisações de atividade, o Fed passou a oferecer incentivos a pessoas e empresas para reduzir os impactos econômicos do período. Naquele momento, as taxas de juros foram zeradas.
De acordo com Zaib, parte desses incentivos econômicos foi usada pela população e pelas empresas para o pagamento das contas básicas, mas outra porção foi guardada nos bancos. Por se tratar de um momento de incerteza, a grande parte dos depósitos foi feita à vista, modalidade mais tradicional e que permite ao cliente pode sacar o dinheiro quando quiser.
Com as taxas de juros zeradas, parte dos bancos investiu os recursos depositados pelos clientes em um dos títulos do Tesouro americano, que oferecia uma rentabilidade acima da média, de cerca de 1,5% ao ano, mas que tinha um prazo de duração longo.
Conforme a inflação passou a subir e o Fed iniciou uma política de alta nos juros, a estratégia se mostrou ruim. Isso porque os clientes passaram a solicitar saques do dinheiro depositado e os bancos precisaram se livrar dos títulos do Tesouro com prejuízo.
“Daí o que aconteceu é até fácil de entender: se a pessoa tinha um recurso depositado no banco sem retorno algum e, de uma hora pra outra, os juros sobem para mais de 5% ao ano, ela retira esse dinheiro de onde está para investir em outra coisa que ofereça mais rentabilidade”, diz Zaib.
Com a informação de dificuldades dos bancos se espalhando, ocorreram as chamadas “corridas bancárias” de clientes com medo de que as instituições quebrassem e lhes desse um calote.
Funciona como uma “profecia autorrealizável”: quando muitas pessoas têm medo de que um banco quebre e correm para sacar o dinheiro, ele realmente quebra porque não tem recursos em caixa para atender toda a demanda.
Concentração do sistema bancário
Um consenso entre os especialistas é que é bastante improvável que uma corrida bancária no Brasil tenha os mesmos impactos que nos Estados Unidos. E isso pode ser explicado por um motivo simples: há um número muito menor de instituições financeiras, com muito mais clientes.
Marcelo Malta, diretor-executivo da Arcani Investimentos, destaca que os cinco principais bancos do país possuem dezenas de milhões de consumidores e, exatamente por isso, a probabilidade de que uma corrida bancária atinja uma porcentagem relevante dos clientes é muito pequena.
Já nos Estados Unidos, o sistema financeiro é muito pulverizado: há centenas de bancos, e a grande maioria deles conta com um percentual menor clientes em relação ao total da população.
“Em um banco com 500 mil ou um milhão de clientes, se 50% das pessoas resolvem sacar o dinheiro, isso com certeza vai quebrar o banco, porque o número total de contas é muito menor do que em bancos maiores, como os que existem no Brasil”, aponta Malta.
Vale lembrar que os três bancos que quebraram nos Estados Unidos eram bancos regionais, de pequeno ou médio porte. Os riscos de que a crise chegue nos grandes bancos americanos são bem menores, de acordo com todos os especialistas consultados pela reportagem.
Para Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa, é justamente a forte pulverização naquele país que torna mais difícil que todo o sistema bancário americano quebre, já que se uma das centenas de bancos de pequeno ou médio porte quebrar, o impacto econômico será menor.
“Fazendo um paralelo com o Brasil, se um dos principais bancos daqui quebrasse seriam muitos milhões de clientes impactados, o que traria um problema enorme para todo o sistema. Então, mesmo que seja difícil, se um banco quebrasse no Brasil, o risco para toda a economia seria maior do que nos Estados Unidos”, diz Sanchez.
Especialista diz se crise dos bancos nos EUA pode chegar no Brasil
Forte regulamentação brasileira
Matheus Amaral, analista de bancos do Inter Research, reafirma que o grande problema nos Estados Unidos é o “descasamento entre ativos e passivos”, ou seja, o fato de os bancos não terem dinheiro em caixa suficiente para arcar com os saques.
Além das escolhas estratégicas de investimentos que não deram certo para aquelas instituições, o especialista destaca que a regulamentação dos bancos lá fora é bem menos rígida que no Brasil.
Há um órgão global, o Comitê de Basiléia, que prevê recomendações de regulações e reúne as melhores práticas bancárias para a promoção e a manutenção da estabilidade dos sistemas financeiros nos países.
No final dos anos 90, após a implementação do Plano Real e da falência de alguns bancos brasileiros, o país adotou as recomendações desse comitê, mas optou por aplicar medidas ainda mais restritivas para garantir a segurança.
Com as regras adotadas naquele momento, as instituições financeiras brasileiras passaram a ter a obrigação de manter um montante de patrimônio líquido mínimo para garantir a liquidez, por exemplo.
Essa reserva deve conter, para além da proporção indicada pelo Comitê de Basiléia, montantes específicos para arcar com os riscos de crédito de diferentes tipos de ativos.
Nos Estados Unidos, conforme explicam os especialistas, essas reservas são menores. Assim, os bancos do país operam com mais riscos, ponto que pode ser prejudicial em momentos, como o atual, de incertezas econômicas.
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