Entenda por que veto a cirurgia de mudança de sexo faz Brasil responder por violação de direitos humanos em corte internacional

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Mulher de 55 anos teve procedimento negado pelo HC da Unicamp, em Campinas (SP). Ela realizou procedimento pelo sistema privado, e busca indenização e reconhecimento da violação dos direitos. Foto de arquivo da Corte IDH, que irá julgar o Estado brasileiro por supostas violações de direitos contra uma mulher trans que teve cirurgia de mudança de sexo negada pelo HC da Unicamp
Leopoldo López
O Brasil será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por supostas violações de direitos de uma mulher trans que teve a cirurgia de mudança de sexo negada pelo Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, em Campinas (SP).
Os procedimentos tiveram início em 1997 e, sem obter solução no judiciário brasileiro, a cabeleireira contraiu empréstimos e realizou a cirurgia de redesignação sexual no serviço médico privado, em 2005. Mas seguiu nos tribunais na tentativa de obter assistência médica adequada ao seu caso.
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De acordo com o advogado da cidadã brasileira, Thiago Cremasco, a Comissão Interamericana (CIDH) reconheceu a violação dos direitos humanos e ofereceu recomendações ao Estado brasileiro. Contudo, diante da “falta de resposta adequada”, o caso foi encaminhado à Corte.
A mulher trans, de 55 anos, busca no tribunal internacional, além de indenização, reconhecimento de violação dos direitos pelo Estado.
Ao g1, a Advocacia-Geral da União (AGU) confirmou que foi notificada da apresentação do caso, que ainda não tem data para o julgamento.
“Após o início do procedimento perante à Corte IDH, foi aberto prazo para que os representantes da vítima apresentem seu Escrito de Petições, Argumentos e Provas (EPAP), que consiste basicamente em uma peça de acusação contra o Estado. Este é o momento processual atual. Após o oferecimento do EPAP, será aberto prazo para o Estado apresentar sua contestação escrita. A AGU coletará subsídios e informações dos órgãos públicos envolvidos para apresentar a posição do Estado brasileiro”, diz, em nota.
Entenda, abaixo, a cronologia do caso e qual o impacto da Corte internacional no judiciário brasileiro.
Início do pedido 📝
Quando ela entrou com o pedido? A mulher trans iniciou acompanhamento multidisciplinar para o procedimento em 1997. Segundo o advogado, o pedido foi feito após o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizar, por meio da Resolução 1482/97, que hospitais públicos e universitários adequados à pesquisa pudessem realizar operação.
Negativas do hospital: De acordo com Thiago, depois de quatro anos de espera, o HC da Unicamp passou a negar a cirurgia, levando a uma ação judicial em 2002.
Como o judiciário brasileiro não ofereceu uma solução rápida, a mulher, por meio de empréstimos junto à iniciativa privada, realizou o procedimento em um serviço médico particular no ano de 2005.
“Com a realização da cirurgia em serviço médico particular, ela passou a ter muito mais qualidade de vida, no entanto, até hoje, sofre com a falta de assistência médica necessária e adequada às peculiaridades do caso”, destaca o advogado.
Hospital de Clínicas da Unicamp, em Campinas (SP)
Reprodução/EPTV1
Busca na Justiça ⚖
Segundo Cremasco, foi ingressada uma ação de obrigação para que a mulher trans pudesse ser atendida em suas necessidades, pela própria Unicamp ou qualquer outro serviço público ou mesmo particular, além do pagamento de indenização pelos danos sofridos, mas a Justiça negou o pedido.
“Não reconheceu o direito à assistência médica e nem mesmo à indenização pelos graves danos morais vivenciados durante todo o período, que se refletiu, inclusive, em tentativas de suicídio e automutilação”, conta Cremasco.
Com a negativa, a cabeleireira foi em busca do reconhecimento internacional da omissão do Estado brasileiro em garantir seus direitos fundamentais. O caso acabou sendo enviado para julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Ela espera não apenas justiça para seu caso pessoal, mas também para a população de transexuais no país”, ressalta Thiago.
A expectativa do advogado é que a Corte reconheça a violação dos direitos da paciente e que condene o Estado no pagamento da indenização pelos danos que foram causados. Além disso, realiza medidas adequadas para que o direito à saúde e à dignidade seja, não só para sua cliente, mas também para toda população de transexuais que precisam de assistência no país.
Segundo o Hospital de Clínicas da Unicamp, as equipes da época em que foi feito o pedido do procedimento não atuam mais.
Além disso, apenas uma cirurgia de redesignação sexual foi efetuada no final dos anos 1990, e até então, não houve mais realização.
HC da Unicamp, em Campinas
Giuliano Tamura/EPTV
Passo a passo
Segundo a Comissão, foi constatado pela equipe médica em 1997 que a paciente apresentava quadro de depressão, episódios de tentativas de suicídio e “transtorno de identidade sexual”.
Em abril de 1998, a cabeleireira teria passado por uma intervenção inicial de afirmação de gênero no hospital. Já em março de 2001, ela foi internada para modificar a aparência da laringe. Porém, a cirurgia foi cancelada por conta da ausência do anestesista.
Em maio do mesmo ano, a direção da clínica da Unicamp declarou que a paciente deveria ser encaminhada para outra cidade, pois o hospital não tinha condições para realizar o procedimento de redesignação de sexo.
O novo local, porém, não reconheceu o diagnóstico realizado pelos médicos anteriores, fazendo com que a mulher passasse novamente por avaliação médica, além de viajar para a capital constantemente durante dois anos, gerando gastos.
Uma notificação extrajudicial foi enviada ao HC da Unicamp em abril de 2002, solicitando a realização de cirurgia. Segundo informações disponíveis na Corte IDH, a resposta teria sido que o procedimento não poderia ser feito, pois não havia o equipamento que as equipes multidisciplinares precisavam fornecer e o hospital não estava credenciado.
A cabeleireira então ajuizou uma ação de danos morais contra a Unicamp, alegando que foi criado uma expectativa que a cirurgia seria realizada. Foi pedido para que o Judiciário ordenasse o hospital a realizar o procedimento ou que pagasse para que fosse executado de forma particular.
Como não foi possível o hospital público realizar a cirurgia, a paciente conseguiu em 2005 um empréstimo e fez o procedimento de forma particular. Em 2006, houve uma decisão foi desfavorável em primeira instância, e ela recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Com o processo ainda pendente, em agosto de 2007, o Tribunal Regional Federal da 4° Região (TRF4) emitiu uma decisão em âmbito nacional colocando o “procedimento de afirmação de gênero” entre os procedimentos cirúrgicos que o Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo com a nova decisão, o TJ de São Paulo negou o recurso da paciente em 9 de junho de 2008.
Foto de arquivo da Corte IDH, que irá julgar o Estado brasileiro por supostas violações de direitos contra uma mulher trans que teve cirurgia de mudança de sexo negada pelo HC da Unicamp
Leopoldo López
Impactos na saúde física e mental
Segundo a CIDH, houve um atraso sem justificativa nos mais de cinco anos de tramitação do caso, causando o atraso da cirurgia, no qual teve um impacto negativo na saúde física e mental da paciente.
Para a Comissão, o Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos dos artigos 5.1, 8.1, 11.1, 24., 25.1 e 26 da Convenção Americana. São eles:
5.1: Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral;
8.1: Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei;
11.1: Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade;
24: Todas as pessoas são iguais perante a lei;
25.1: Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção.
Atuação da Organização dos Estados Americanos
O advogado Renato Dellova explicou ao g1 que a atuação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no direito brasileiro é estruturada em quatro pilares fundamentais. Veja abaixo:
Democracia
Direitos humanos
Segurança
Desenvolvimento
Os instrumentos como cooperação, diálogo e mecanismos de acompanhamento são essenciais para essa atuação eficaz. A OEA contribui para a construção de grandes tratados multilaterais, auxiliando os países na elaboração de legislações e concretização de discussões.
Segundo Dellova, o Brasil, ao longo dos anos, “estabeleceu uma imagem relevante, demonstrando o hábito de cumprir decisões da Corte, inclusive por meio da criação de leis específicas, como o caso da Rede Cegonha, que assegura o direitos das mulheres e crianças”.
Peticionamento na CIDH
Segundo a Convenção Americana, apenas Estados Partes e a Comissão Interamericana têm o direito de submeter um caso à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Indivíduos ou organizações que identificam violações à Convenção podem recorrer ao Sistema Interamericano, apresentando suas denúncias à Comissão. A CDHI tem competência para reconhecer petições de qualquer pessoa, grupo ou entidade não-governamental legalmente reconhecida, que contenham denúncias ou queixas de violação por um Estado Parte.

Cumprimento da sentença
A Corte Interamericana exerce principalmente três funções, sendo elas a contenciosa, emissão de medidas provisórias e consultiva. Na função contenciosa, a Corte determina se um Estado cometeu em responsabilidade internacional a violação de algum dos direitos consagrados na Convenção Americana ou em outros tratados de direitos humanos aplicáveis ao Sistema Interamericano.
A Corte também realiza a supervisão de cumprimento de sentenças. Sendo assim, o julgamento é feito pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e a sentença deve ser executada pelo judiciário brasileiro.
Existe possibilidade de não cumprimento❓
De acordo com Renato, existe a possibilidade que mesmo a Corte dando uma sentença, ela não seja cumprida.
“Devemos entender que o sistema da OEA é um sistema complexo, assim como o sistema brasileiro. Para o cumprimento de qualquer decisão da Corte, está deve estar em conformidade não apenas com as normas ali emanadas, mas deve se adequar também as leis brasileiras. O objetivo sempre será de observar a Convenção, mas sem ignorar ou anular a Constituição Federal”, explica.
Embora a expressão das decisões da CIDH seja política, seu cumprimento pelo Estado brasileiro tem materialidade judicial. Portanto, mesmo sujeito a sanções, o Brasil avalia caso a caso.
A supervisão de cumprimento das sentenças é um dos elementos essenciais, onde a própria Corte diariamente verifica se os Estados estão cumprindo as reparações ordenadas em suas sentenças, utilizando diversas formas, como processo escrito, audiências, visitas e notas da Secretaria do Tribunal.
*Sob supervisão de Fernando Evans
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