Recuperação da Gol: entenda a reestruturação da empresa e por que tantas aéreas estão em crise

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Dívida de R$ 20 bilhões ligou alerta se o destino de mais uma companhia aérea brasileira seria a falência. Especialistas ouvidos pelo g1, contudo, acreditam que a empresa deve conseguir reestruturar as contas e seguir operando. Avião da Gol Linhas Aereas Inteligentes SA decola do aeroporto de Congonhas em São Paulo em foto de 11 de setembro de 2017
Paulo Whitaker/Reuters
Depois de muita especulação, a Gol anunciou que entrou com pedido de reestruturação financeira nos Estados Unidos, pelo Capítulo 11 da lei de falências. Trata-se de um processo semelhante à recuperação judicial brasileira, que serve para remanejar suas obrigações no curto prazo, enquanto busca sustentabilidade da operação para os próximos anos.
A dívida da companhia aérea é estimada em R$ 20 bilhões. Pelo montante, já havia uma expectativa de que a Gol recorresse a uma recuperação judicial para contornar problemas financeiros causados, em grande parte, pelo alto custo operacional e pela pandemia de Covid-19.
A confirmação do pedido, porém, volta a jogar luz sobre dificuldades antigas do setor aéreo: a dificuldade das companhias em manter seus negócios de forma saudável.
A última empresa do setor a parar de operar no Brasil foi a Itapemirim, que fez seu último voo em 2021. Mas a lista de falências é extensa: é o caso da Avianca Brasil, da Varig e da Transbrasil, entre outras.
As dificuldades são uma realidade global. Um levantamento divulgado pela Airlines for America, associação que representa as principais companhias aéreas norte-americanas, mostra que, desde 1979, a justiça americana já registrou mais de 300 pedidos de recuperação judicial ou falência entre companhias aéreas ao redor do mundo.
Apesar de ter uma dívida bilionária, a expectativa de analistas não é de um destino tão trágico para a Gol. Os especialistas ouvidos pelo g1 acreditam que a empresa deve conseguir reestruturar as contas e seguir operando. Mas, em um setor tão complexo, há desafios na rota.
Gol entra com pedido de recuperação judicial nos EUA
Qual a situação da Gol?
Ygor Araújo, analista de transportes e logística da Genial Investimentos, explica que a principal causa de endividamento da Gol é o alto custo de manter a sua operação.
Parte das aeronaves utilizadas pela companhia funcionam por um modelo conhecido como leasing (arrendamento, na tradução para o português). Em suma: a companhia aérea aluga aeronaves que utiliza no dia a dia em vez de comprá-las das fabricantes. As estimativas são de que metade do endividamento da Gol tenha esses aluguéis como motivo.
A Gol precisou reforçar a utilização do leasing porque a Boeing, sua fornecedora de aeronaves, atrasou a entrega de uma nova frota aérea, prevista para chegar até 2028.
Além dos arrendamentos, Ygor Araújo, da Genial, destaca que a Gol tem desembolsado uma quantia relevante de recursos para realizar as manutenções contínuas de aeronaves mais antigas.
Soma-se a essa situação a herança de dívidas trazidas pela pandemia de Covid-19. A drástica redução do número de voos fez todo o setor registrar prejuízos enormes, além da necessidade de prolongar o prazo das dívidas que já existiam.
O especialista ainda ressalta que dólar e petróleo ficaram mais caros nos últimos anos. Juntos, os dois fatores fazem com que suba também o preço do querosene de aviação, deixando ainda mais cara a operação das aéreas.
Não bastasse, as taxas de juros elevadas no mundo todo, principalmente Estados Unidos, dificultam novas tomadas de crédito pelas companhias.
A boa notícia é que, em seu último balanço financeiro, a Gol registrou números melhores do que a expectativa de mercado. No terceiro trimestre de 2023, a empresa teve R$ 4,7 bilhões em receita operacional, um recorde histórico, segundo a companhia.
“A Gol passa por um processo operacional em que os resultados são bons, mas, como ela está em uma situação de caixa delicada, teve que escolher entre gastar o dinheiro para fazer a manutenção nas aeronaves e continuar sua operação, ou pagar os credores”, diz Araújo.
A expectativa geral do mercado, portanto, é de que a companhia terá uma ajuda para manter suas atividades normalmente, aproveitando o processo para gerar caixa. A Gol informou, inclusive, que a recuperação não trará impactos para seus clientes e funcionários, nem para serviços como o clube de milhas Smiles.
Em relação aos fornecedores e parceiros comerciais, a Gol afirma que vai honrar os seus compromissos financeiros, assumidos no dia ou depois do pedido de recuperação judicial. Já as dívidas expressivas assumidas antes disso serão renegociadas na recuperação.
Número de empresas em recuperação judicial sobe no país
Por que a Gol escolheu os EUA? E quais os próximos passos?
A escolha pelos Estados Unidos para o processo de recuperação judicial tem a ver com quem são os principais credores da Gol, explica Ygor Araújo, da Genial. A maioria das dívidas são com empresas de leasing e instituições financeiras, algumas internacionais.
A maioria das dívidas, portanto, foi emitida no exterior, principalmente nos EUA. Assim, o caminho pela justiça americana facilita as negociações.
A recuperação judicial nos Estados Unidos ocorre pelo Capítulo 11 da lei de falências, que atende empresas que pretendem se reestruturar enquanto continuam com suas operações. O mecanismo pode ser acionado tanto pela própria companhia quanto por seus credores.
O objetivo é permitir que a empresa possa renegociar suas dívidas, estender prazos e, até mesmo, conseguir novos empréstimos, tudo sob mediação da justiça.
A Gol já informou que garantiu US$ 950 milhões em financiamento para apoiar seus negócios, em uma espécie de empréstimo feito em ambiente de recuperação judicial. O empréstimo será feito pelo Grupo Ad Hoc de Bondholders (investidores que possuem títulos de dívidas) da Abra — holding que controla a Gol —, além de outros Bondholders da Abra.
“A companhia buscará acesso a esse financiamento como parte da audiência do Primeiro Dia com o Tribunal dos EUA, prevista para os próximos dias”, disse a companhia, em nota.
“Juntamente com o caixa gerado pelas operações em curso, [o financiamento] fornecerá liquidez substancial para apoiar as operações, que seguem normalmente durante o processo de reestruturação financeira”, concluiu a empresa.
Para além desse financiamento, a Gol precisa apresentar o plano de recuperação judicial, mostrando como e quando vai pagar suas dívidas, e tudo precisa ser aprovado pelos credores.
Por que tantas companhias aéreas passam por crises?
William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue Securities, lembra que o setor aéreo é “muito sensível a qualquer acontecimento”, porque as companhias estão sempre alavancadas. Em outras palavras: são empresas com dívidas altas e que contam que sua receita será o suficiente para arcar com os credores.
No entanto, qualquer desajuste no caminho pode gerar uma diminuição importante de caixa. Foi o que aconteceu na pandemia, quando as viagens ficaram mais escassas. Mas muitos outros eventos também podem desencadear problemas financeiros.
“Se o preço do petróleo sobe ou o querosene fica mais caro, o impacto é claro no caixa da companhia. Se a situação financeira da população aperta e as pessoas viajam menos, vem mais um impacto no caixa. Se uma companhia menor nasce e rouba uma fatia da maior, também impacta o caixa. Fora os acidentes, quem impactam todo o setor”, pontua Castro Alves.
Paulo Gitz e Maria Jordão, analistas de internacional da XP Investimentos, compartilham da mesma visão e ainda destacam a sensibilidade que o setor tem aos juros. “Em momentos de choque macroeconômico, a queda na receita pode impactar o fluxo de caixa e até mesmo as operações das companhias”, pontuam, em nota enviada ao g1.
“Por isso, é muito comum que companhias aéreas entrem com pedido de recuperação judicial na justiça americana”, pontua o estrategista da Avenue. Os exemplos são muitos: American Airlines, Delta e United Airlines já passaram pelo processo, por exemplo.
Os analistas da XP pontuam ainda a concentração do mercado de fabricantes de aeronaves, que tem poucos fornecedores.
“O setor é extremamente intensivo em investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e possui uma extensa e complexa cadeia de produção. Com isso, é natural que ocorra alguma concentração. Os principais fornecedores de aeronaves são Boeing e Airbus, e em uma proporção menor, a brasileira Embraer e a canadense Bombardier”, comentam.
Com isso, qualquer adversidade enfrentada por uma fabricante, tem grande potencial de impacto em diversas companhias aéreas. O recente caso do avião da Boeing que perdeu uma porta no ar, por exemplo, atrasou calendários de voos e ainda implica em um risco considerável de intervenções de órgãos de regulação concorrencial.
Aqui no Brasil, a Latam também passou por uma recuperação por meio do Capítulo 11. Em maio de 2020, o grupo Latam Airlines e suas afiliadas no Chile, Peru, Colômbia, Equador e Estados Unidos entraram com o pedido. Depois, em junho do mesmo ano, foi a vez da filial do Brasil, que representa cerca de 50% de toda a operação.
O endividamento do grupo era de mais de US$ 10 bilhões e, na recuperação, a companhia obteve um desconto de 35% — cerca de US$ 3,6 bilhões. Hoje, a Latam opera normalmente.
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