Compensação tributária de decisão transitada em julgado

Iniciamos 2024 com uma nova limitação à compensação tributária federal, em que permeiam dúvidas sobre aplicação além de vícios de legalidade e constitucionalidade. A MP 1202/2023, ainda pendente de conversão em lei, trouxe uma limitação mensal ao crédito de compensação tributária decorrente de decisão transitada em julgado cujo valor seja superior a R$ 10 milhões.

A Portaria Normativa MF 14/2024, em razão de delegação conferida ao Poder Executivo, trouxe os critérios com relação ao valor mensal a ser compensado pelo contribuinte ficará limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação (“Per/Dcomp mãe”) dividido pela quantidade de meses.

O “fracionamento no tempo” da compensação tributária visa, aos olhos do Governo Federal, “resguardar a arrecadação federal ante a possibilidade de utilização de créditos bilionários para a compensação de tributos” (Exposição de Motivos). A nosso ver, justificativa pouco plausível e em contraposição ao dever de pagar dívidas reconhecidas em decisões transitadas em julgado. Ora, a previsão quanto à obrigação pelo pagamento das contingências passivas está na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), cujo Anexo V de Riscos Fiscais indica quais são os potenciais passivos contingentes e seu grau de risco (provável, possível e remoto). Assim, da mesma forma que as empresas constituem provisões tributárias, o Governo Federal deveria fazer da mesma forma.

Mas não é a primeira e provavelmente não será a última vez que o Governo Federal, no ensejo de manter ou aumentar a arrecadação tributária, traz uma restrição ao direito à recuperação do indébito tributário via compensação.

O artigo 170 do Código Tributário Nacional (CTN) confere à lei a prerrogativa de autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, “sob as condições e garantias que estipular”, ou seja, cabe a cada um dos entes federados decidir pela possibilidade de pagar suas dívidas mediante compensação.

Tal previsão é aceita pelo Poder Judiciário que, inclusive, ao ser instado a se manifestar, reconheceu a legalidade de algumas limitações, a saber (i) vedação com tributos de espécies distintas (Lei 8.383/91); (ii) vedação à compensação tributária antes do trânsito em julgado da ação judicial (artigo 170-A do CTN); e, a mais recente, (iii) a impossibilidade de compensação de crédito tributário com estimativa mensal de IRPJ e CSLL (Lei 13.670/2018).

Independente deste cenário favorável ao fisco, cabe a nós – advogados que militam no contencioso tributário – avaliar os argumentos e precedentes existentes e, a partir disso, buscar novas perspectivas de questionamento judicial com vistas a reduzir os impactos sofridos pelos contribuintes.

Primeiramente, entendemos que o artigo 170 do CTN coloca como única condição o trânsito em julgado da ação judicial, sendo que não há norma prevendo uma autorização para restrições quantitativas e/ou temporais, mas apenas condições ou garantias. Portanto, a previsão de uma limitação quantitativa e temporal, somado ao fato de que houve delegação ao Ministro da Fazenda para estabelecer os critérios de valores e prazo mínimo, ofenderia o próprio artigo 170 do CTN.

Além disso, há uma clara violação ao princípio da isonomia, pois a União Federal concede a si própria o benefício de receber seus créditos no prazo, mas só adimplir suas dívidas com os contribuintes no futuro. Nesse sentido, invocamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7064, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou regras sobre o pagamento de precatório e assim se manifestou: “a postergação do pagamento de valores relativos aos precatórios que excederam o teto fixado em Emenda à Constituição ensejou o sacrifício de direitos individuais do cidadão titular de um crédito em face do poder público, abalando sobremodo a legítima confiança nas instituições violando os efeitos da coisa julgada que foi favorável aos credores”.

O limite ora imposto à compensação tributária prejudica a já malferida via do solve et repete, em que de um lado o contribuinte é obrigado a cumprir a lei ainda que entenda ser ela inconstitucional e/ou ilegal e pagar tributo indevido, mas, por outro lado, quando obtém decisão transitada em julgado a seu favor é obrigado a utilizar os créditos de forma limitada e temporal.

Ainda que se admita sua legalidade e constitucionalidade, o fato é que tal limitação (i) representou aumento de carga tributária para aquelas empresas que vinham utilizado de créditos reconhecidos judicialmente para fins de compensação e, portanto, dever-se-ia observar aos princípios da anterioridade anual ou nonagesimal; e (ii) não poderia ser aplicada para as ações judiciais ajuizadas antes da MP 1.202/2023 e/ou para situações em que já houve o trânsito em julgado e o contribuinte já iniciou a compensação dos valores.

Neste ponto, a portaria do Ministério da Fazenda não foi clara sobre a aplicação dos critérios para as compensações em curso, trazendo bastante insegurança jurídica aos contribuintes sobre o critério a ser aplicado: se considera o valor da data da apresentação da primeira PERDCOMP apresentada anteriormente e aplica o critério desde lá ou somente agora; ou se considera o saldo remanescente em janeiro de 2024. Em razão dos artigos 105 e 106 do CTN, que privilegiam o princípio da irretroatividade tributária na aplicação da lei, nos parece que essa última interpretação seria a mais adequada.

Independente disso, entendemos defensável que a nova regra só poderia ser aplicada aos créditos vinculados a ações ajuizadas após a sua entrada em vigor, sob pena de se aplicar norma menos benéfica de forma retroativa, em situações em que o contribuinte já iniciou o procedimento de compensação e renunciou ao direito da execução judicial via precatório por exigência infralegal[1].

Deve-se aplicar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Recurso Especial 1.164.452 – que reconheceu que a vedação do artigo 170-A do CTN, introduzida pela LC 104/2001, aplicar-se-ia somente para as ações ajuizadas a partir da publicação da lei complementar[2].

O voto condutor do então ministro Teori Zavascki corretamente entendeu pela “aplicação intertemporal de uma norma que veio dar tratamento especial a uma peculiar espécie de compensação: aquela em que o crédito do contribuinte é objeto de controvérsia judicial”. Justamente o cenário que se apresenta com a MP 1.202 em que, além da condição qualificadora do artigo 170-A, traz uma condição qualitativa e temporal, para utilização do crédito objeto de disputa judicial.

Note-se que não se está negando a máxima do E. STJ de que a legislação aplicável é aquela vigente na data do encontro de contas, mas sim definindo a incidência intertemporal da norma, tal como fez o saudoso ministro. Para o STJ, o marco para definição da legislação aplicável é aquele em que transmitido o pedido de compensação (encontro de contas), porém, havendo demanda judicial, o julgamento deve aplicar a lei vigente no momento da propositura da ação[3]. Este racional também foi aplicado pelo STF, no Tema 4[4], que tratava da prescrição tributária quinquenal.

Trata-se da aplicação pelos Tribunais Superiores do direito intertemporal em temas tributários para se evitar prejuízo ao contribuinte. Contribuinte este que se encontra em uma situação menos favorecida na relação com o fisco; fisco este que reitera a presunção de constitucionalidade das normas tributárias, mas que tem como suporte leis inválidas. O que vemos é o contribuinte sendo constantemente colocado em episódios que ouso chamar de “lucro da inconstitucionalidade”. Mais uma vez a solução é recorrer ao Poder Judiciário para afastarmos essa limitação!


[1] Artigo 102, § 1º, inciso III, da IN 2055/2021”

[2] RESP nº 1.164.452/MG, julgado na sistemática do recurso repetitivo

[3] Como exemplo, AgInt nos EDcl no REsp 2029620 SP

[4] É inconstitucional o art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/2005, de modo que, para os tributos sujeitos a homologação, o novo prazo de 5 anos para a repetição ou compensação de indébito aplica-se tão somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio legis de 120 dias, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005.

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