E quem usa a “norma culta”?

“A língua não é propriedade de ninguém; ela é uma criação coletiva” – diz a linguista histórica baiana, pioneira e uma das autoridades no estudo da história da Língua Portuguesa no Brasil, Rosa Virgínia Mattos e Silva (in Memorian).

Por que começo a coluna de hoje com essa citação?! Porque já está mais do que na hora de entendermos que não falamos o mesmo português. Nossos registros linguísticos dependem de uma série de fatores (idade, região geográfica – macro e micro, sexo, identidade de gênero, interesses pessoais, grau de escolaridade, mercado de trabalho, enfim…) para se manifestarem enquanto linguagens.

E essas manifestações, esses muitos portugueses que falamos e escrevemos, com o qual nos expressamos é tão variado quando podemos ser enquanto pessoas. E é tão livre e independente de normas quanto se é capaz de evoluir e se construir das mais variadas formas.

Trago o assunto da língua portuguesa e suas muitas maneiras de existir na boca de seus falantes, na escrita de seus escreventes pra alfinetar o despreparo linguístico e intelectual dos fazedores de leis desse Brasil de meu Deus, como uma que foi sancionada na capital do Rio Grande do Norte esses dias: a lei que proíbe o “uso” da linguagem neutra em instituições de ensino públicas ou privadas de Natal.

Como assim, Brazel!?

No texto da lei está escrito o seguinte: “Fica proibida às instituições formais públicas e privadas de ensino, localizadas no município de Natal, a aplicação, ainda que eventual, da denominada linguagem neutra ou dialeto não-binário, ou de qualquer outra que descaracterize a norma culta da Língua Portuguesa. ”

Aí eu me pergunto:

Qual é a escola que “aplica”, mesmo de forma eventual, a linguagem neutra em Natal?! Tipo, onde é que se dá curso, mesmo que relâmpago, de mais essa forma de se falar e escrever em Língua Portuguesa?

Pergunto também:

E se na escola houver pessoas não-binárias que se manifestem com essa linguagem? Serão elas silenciadas e punidas novamente? Porque calar alguém já é uma punição, né?!

E ainda questiono:

“Outra forma que descaracterize a norma culta”?! Meu bem, ninguém usa norma culta no cotidiano, usamos o registro coloquial que já dá milhões de novas características a essa língua tão rica e possível de desdobramentos infinitos. Tá todo mundo descumprindo a novíssima e patética lei! Tá sabendo?!

Então devemos todos nos calar, parar de escrever, deixar de mandar mensagens de WhatsApp? As escolas vão ter que começar a usar o “Vós”, “vosso”, “vossa”, “convosco”, primar pelo uso das mesóclises. Tornar-nos-emos escravos de regras rígidas da norma culta da língua?! Será?! Ou nosso destino será: “Teje preso/a/e?!”

Será que os legisladores sabem usar essa tal de “norma culta”? Será que eles sabem do que estão falando? Será que eles sabem sobre o que escrevem? Certamente não! E é por isso que usam apenas os seus preconceitos como norteadores de leis infundadas e anticonstitucionais. 

Meu bem, ninguém pode impedir a forma como outra pessoa fala. O que não pode haver no que você diz ou escreve é preconceito, é racismo, é xenofobia, é LGBTfobia… Nesse caso, você é um criminoso! Tá previsto no código penal!

Enquanto isso alunes e professores, pais e mães não-bináries não podem ser proibides de se expressarem como quiserem. A Língua Portuguesa está viva e evolui e se há um coletivo que a utilize de formas específicas, não há problema algum.

Que Vossa Mercê compreendais esses fenômenos definitivamente! Caso contrário, que vós decoreis a gramática normativa e somente ousai abrir a boca quando vós souberdes usar suas normas de cor! Tenho dito!!!

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